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As aranhas têm coração ?

Ainda mal tinha aquecido o sofá, quando a filha o chamou. Suspeitou que os deveres se preparavam para lhe estragar, mais uma vez, a soneca do fim da tarde. Porque é que a miúda esperava por ele para os fazer ? Que não tinha tido tempo, estivera toda a tarde com a avó a tentar saber se as aranhas tinham coração.

Mas para quê ?
Para o trabalho da Área de Projecto.
Sem ter ficado propriamente esclarecido, lá se dispôs a ajudar a filha a preencher uma linha do tempo relacionada com os episódios marcantes da formação de Portugal. Era este o trabalho de casa do dia.
A mulher também não lhe soube explicar o que era a Área de Projecto, embora, tal como ele, achasse que a questão sobre as aranhas era bastante esquisita. Ainda por cima a pergunta nem era da professora. Não é ? Não. Parece que foi um colega da Mariana que a inventou.
Uns tempos depois lembrou-se de lhe perguntar qual seria, dessa vez o trabalho na tal Área de Projecto. Perguntou-lho. Vou ter que saber porque é que o mar se chama oceano.
Ao fim de uns dias, enquanto dava uma vista de olhos pelo caderno de textos da pequena, voltou a perguntar-lhe, mais uma vez, pelo trabalho na Área de Projecto. Agora vamos fazer uma assembleia de turma para dizermos uns aos outros o que é que descobrimos, respondeu-lhe a filha. E para que é que isso serve ? Para construirmos um álbum. Escrevemos as respostas, fazemos desenhos, apresentamos o trabalho uns aos outros e a professora mete no álbum. Depois ela mostra-vos.
            Como é que eles tinham tempo para fazer tudo isto ? Não haveria o risco de se estar a negligenciar as aprendizagens no Português e na Matemática ?
A coisa, contudo, não ficara por aqui. Um dia, a Mariana aparecera, em casa, com uma carta escrita por uma miúda de Braga. É a primeira carta da minha correspondente. Deixa ver. Não passava de uma carta escrita por uma criança para outra criança. Por mais entusiasmo que a filha naquele momento demonstrasse, sentiu-se assolado, novamente, pelas mesmas dúvidas de sempre. Não se podia usar o tempo a fazer outras coisas? A Mariana, ali, apesar de ser uma excelente aluna, tinha uma caligrafia horrível. Pelo menos ele achava que sim, em comparação com aquela que ele próprio fazia quando andava na Escola Primária. Alguma vez seria capaz de dividir por três algarismos? Viu-a fazer uns problemas em Matemática que ele, de facto, não percebia lá muito bem como se resolviam, mas seria capaz de descobrir a que horas é que se cruzavam dois comboios a meio da Linha do Norte, se o de Lisboa saísse dez minutos depois de ter saído o comboio do Porto. É verdade que não falhava uma resposta que fosse nos testes de avaliação, mas onde é que alguma vez seria capaz de saber de cor e salteado os afluentes do Douro e do Tejo. E aquela falta de disciplina pessoal? Nunca seria capaz de fazer as doze cópias que a professora lhe marcava, a ele, durante as férias de Natal. Já nem falava do tratamento por tu nem da familiaridade da relação que existia entre a miúda e a professora, embora, como confessou um dia a um colega de trabalho, aquilo lhe parecesse confiança a mais. E no futuro, como seria? É de pequenino que se torce o pepino e é bem certo. Um dia vai ser necessário respeitar patrões e aprender o valor das hierarquias. Será que com tanta abertura, crianças, como a Mariana, seriam capazes de enfrentar o mundo cão que em adultos iriam ter de enfrentar? Agora tudo era muito bonito. Trabalhavam em grupo, eram estimulados a ajudar-se, a dar opinião, a criticar ou a ser atentos ao que os outros diziam. Para quê? Se não duvidava do profissionalismo da professora, se sentia que a filha estava entregue a alguém que sabia o que andava a fazer, não deixava de se interrogar, contudo algumas vezes, até que ponto todo aquele idealismo pedagógico era congruente com a vida num mundo tão hipócrita, marcado pelo salve-se quem puder, pela lei do mais forte e pela arbitrariedade das decisões disfarçadas de pragmatismo e bom-senso.
Mariana, isto é um á ou um ó ?
Pai, porque é que estás sempre a perguntar a mesma coisa ?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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