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O infinito e o sonho

Junho. Santo Antônio, São João e São Pedro. Mês das festas juninas, danças de quadrilha, barraquinhas oferecendo os tradicionais doces e bebidas da ocasião: cocadas, pés-de-moleque, broas de milho, sequilhos e quentões. Crepitam as lenhas nas fogueiras, fazem-se as ?sortes?, as ?simpatias?. Também não podem faltar os rojões, fogos de artifício, balões. Ah! Os balões ? lindos, desafiadores, perigosos, proibidos.

Nos recônditos de minha memória emerge o inesquecível cenário: o balão de papel de seda multicolorido, iluminado por dezenas de pequenas lâmpadas, perfeito em sua forma oval, desafiando o infinito, subindo...  subindo... Pessoas param na rua para admirá-lo e acompanhar sua trajetória. Comentam sua beleza, a perfeição de suas linhas em perfeita geometria, o encantamento de sua ascensão na noite negra que mais realça suas lâmpadas iluminadas. Quem o fez? De que conhecimentos dispôs para realizar tão perfeita obra? Conhecimentos matemáticos, geométricos, de eletricidade? Foi um engenheiro o autor?
Por entre a multidão que olha para o céu, passa um homem jovem, aparência humilde, roupas simples, chinelos nos pés. Homem tão comum que não provoca a atenção dos transeuntes. Passa despercebido. Simples homem. Também olha para o céu, acompanha a subida do balão, do seu balão. Por ele passam sem olhar. Nele esbarram sem imaginar quem seja. Sente-se vaidoso, orgulhoso ao ouvir os elogios e as palavras de admiração de quem acompanha o percurso do objeto iluminado. Gostaria de gritar? Dizer a todos que aquela brilhante e fugaz ?estrela? saíra de suas mãos?
Não. O silêncio é seu companheiro. Caminha como se estivesse em transe. Sorriso nos lábios, olhar difuso de quem fita outros mundos e outras dimensões, caminhar lento, passadas curtas de quem não tem pressa em chegar ou, na verdade, não tem lugar para onde ir. Seus pés esforçam-se em acompanhar o caminho do balão. Sua obra é maior do que ele. A criatura supera o criador em seu vôo solitário, em busca da amplidão do infinito.
Meus olhos, olhando através do tempo, fixam-se naquele olhar enevoado e distante, aparentemente insano, mas pleno de emoção e de orgulho. O criador acompanhando o percurso de sua criatura constituiu para mim, anos atrás, um espetáculo maior que o dos balões nas noites juninas. Anônimo, dedicado artesão que em laboriosa faina, por dias e dias, noites e noites idealizou, recortou, colou folhas e folhas de papel, instalou lâmpadas, elaborou a melhor bucha, escolheu o piche e o breu na quantidade certa, deu forma, calculou o peso, a proporção e lançou no espaço sua obra maior. Onde aprendeu tão admirada arte? Nos bancos escolares muito pouco sentou-se, a escola por breves anos abrigou-o, mal conseguia assinar o nome, mas suas mãos conseguiam imprimir em suas obras a marca do artista que não teve uma escola para ?formar-se?. Com pouca escolaridade não encontrava empregos estáveis, morava em casa cedida, trabalhava, esporadicamente, em comércio. Nas horas vagas dedicava-se ao entalhe de madeiras, fazia miniaturas de casas com mobiliário completo e iluminação elétrica. Animais, pequenos objetos de madeira, adquiriam vida na ponta de seu canivete ? trabalhos rústicos devido às ferramentas improvisadas, mas artísticos e de muito bom gosto. A satisfação quase infantil que demonstrava ao mostrar aos amigos suas criações contrapunha-se à consciência da limitação do seu trabalho imposta pela precariedade dos instrumentos utilizados e pela inadequação da madeira utilizada. Mas nada constituía obstáculo no seu afã de criar, expressar desejos e sentimentos através das peças que criava.
A arte de Dilson, como outras de tantos outros desconhecidos que no cotidiano nos encantam e enternecem, lembra-nos o quanto se aprende/ensina nas múltiplas redes nas quais se dão o nosso viver e se onde se tecem inúmeros e diversificados saberes e fazeres.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Selma Ferro dos Santos
Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia ? NF, Grupo de Pesquisa: Redes de Saberes em Educação e Comunicação: uma questão de cidadania ? Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ
Selma Ferro dos Santos
Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia ? NF, Grupo de Pesquisa: Redes de Saberes em Educação e Comunicação: uma questão de cidadania ? Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ

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