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Rolando os dados

E o que é a aprendizagem senão o movimento  entre aquilo que fui há instantes atrás e aquilo que ainda não sou ? Aprender é um embate, é um ranger de espadas. Aprender é um risco atraente... é o risco de estarmos novamente e a cada novo instante, além de nós mesmos. Além do que é conhecido, além do que já fomos. Além do que somos.

Certo dia, na sala de aula, solicitei um trabalho que tinha como objetivo construir possíveis relações entre as narrativas pessoais e as narrativas históricas. No meio dos trabalhos, encontrei uma folha avulsa com o seguinte escrito:
?Dina, não sei se posso chamar isso de trabalho, de análise, de aprendizagem. De certa forma, me desestruturei internamente. Também me faltaram dados, bibliografias, até tentei achar, mas nada fechava... Acho que te alugarei como psicóloga nestes e em todos os outros trabalhos. Acho que algumas professoras são mesmo assim: acabam por nos marcar para além da sala de aula. E eu fico a me perguntar: afinal, quantas Dinas  eu ainda  terei que ter como professora para libertar-me, para desfiar-me, para estimular-me... para que eu possa ser simplesmente mulher ? professora - humana. Obrigado, tua aluna Dora.?
Eu fiquei um pouco pensativa ao ler este bilhete e com vontade de devolver esta pergunta a minha aluna, mas nunca pude fazê-la. Faço-a então agora:
-  quantas ?Doras? eu terei que ter como aluna para me tornar simplesmente uma mulher melhor, uma professora melhor um ser humano melhor? 
Talvez nenhuma de nós, querida Dora, tenhamos a resposta... Mas nós sabemos que a vida é feita destes encontros com os outros que não nos habitam e com nossos próprios outros.
Nós sabemos que nossa vida é feita de múltiplas mulheres, de múltiplas professoras, de múltiplas humanidades em cada uma de nós...
Também sabemos que cada vez que permitimos que a vida nos toque ficamos um pouco melhores. E sabemos ainda que terá que acontecer muitas Cláudias, Paulos, Marias, Andrés, Marcos, Lucianes... em nossas vidas e que isso nos fará a cada instante ainda melhores. Porque a vida está repleta destes atravessamentos... Não tenhamos medo deles!
Não tenhamos medo de toda a diferença que  bate a nossa porta porque é na mistura, no encontro com o outro, com o que é estranho, com o estrangeiro em mim que eu me supero. Supero minha própria condição de existência, supero meu espaço, supero meu  tempo.
E o que é a aprendizagem senão o movimento  entre aquilo que fui há instantes atrás e aquilo que ainda não sou ? Aprender é um embate, é um ranger de espadas. Aprender é um risco atraente... é o risco estarmos novamente e a cada novo instante, além de nós mesmos. Além do que é conhecido, além do que já fomos. Além do que somos.
Aprender nada tem a ver com verdades nem com conceitos pré-existentes. Aprender é da ordem do estranho, do inusitado, da experimentação... do acontecimento! É deixar-se atravessar pelos movimentos da vida o quanto mais possível for e quanto mais afecções produzirmos em nós e nos outros, mais os conceitos saltam, pulam, alçam voos para além de nós, para além de si mesmos... E esta é a grande revolução que o ensino pode produzir: construir singularidades, estilos,  assinaturas -  Carlas, Marias, Paulos... Produzir ?ultrapassamentos? na vida.
A matéria bruta de um professor é o saber... mas não apenas o saber acadêmico, o saber instituído, o saber formalizado, o saber congelado dos livros didáticos... Não! Nossa matéria bruta é o saber vivido, o saber sofrido, o saber festejado, o saber experimentado... Aquele que é germinado de nosso quotidiano. Nossa matéria bruta é a própria vida em seu estado de potência... Portanto, não tenhamos medo! A vida é um caminhar...
Deixemos povoar nosso desertos. De outro forma, do que vale a vida?
Fazer populações em mim..., fazer múltiplos em nós..., provocar misturas, encontros, afecções... Quantas Marias...quantas Joanas ainda terão que existir... Abramos os braços a todas elas!
Deixemos nossa matéria bruta emergir! O saber vivido da vida que pede viver!
Não tenhamos medo! A vida esta aí para ser criada.
Sejamos aquele jogador que rola os dados pelo prazer do inusitado; que rola os dados porque o movimento o incita; que rola os dados porque quer arriscar-se...
Sejamos professores apostadores da vida... Joguem seus dados, suas mãos estão potentes de destino...!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Dinamara Feldens
Brasil, UNIVATES
Dinamara Feldens
Brasil, UNIVATES

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