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Contra a hipocrisia

Apesar dos discursos algo apatetados em defesa do consenso em torno das grandes questões políticas, na do aborto, como em muitas outras, não é possível chegar a um compromisso entre a esquerda e os sectores mais reaccionários da sociedade portuguesa acantonados no PP de Paulo Portas. Daí que só exista uma saída: o confronto.

A iniciativa democrática de dezenas de milhares cidadãos colocou, de novo, o debate sobre o aborto na agenda política. Depois do referendo de 1998, transformado pela traição de Guterres em arma de arremesso contra as mulheres, Março é o mês do debate na Assembleia da República sobre um problema social manchado pela hipocrisia e a injustiça.
Como Helena Roseta escreveu recentemente, os argumentos em confronto são bem conhecidos. Avancemos, pois. Desde 1998 que muitas coisas se passaram. Ao contrário do que afiançavam os fariseus da direita reaccionária, assistimos à perseguição e humilhação pelo Estado de mulheres que abortaram. À punição de uma enfermeira a uma longa pena de prisão, julgada como se fosse uma traficante de droga. À censura despudorada a deputados por, no pleno exercício do mandato conferido pelos eleitores, se manifestarem em frente a um tribunal. Enfim, à sanha persecutória dos aparelhos policial e judicial contra actos que quando realizados do outro lado da fronteira, mesmo aqui ao lado, na Espanha governada pelos herdeiros do franquismo, são legais num quadro jurídico que não é muito diferente do nosso.  
A prática clandestina do aborto é uma forma de violência brutal e injusta sobre as mulheres, sobretudo para as desprovidas de recursos económicos, obrigadas quase sempre a interromper a gravidez em condições precárias de higiene e assistência médica. Por outras palavras, o aborto clandestino é um campo onde se manifesta, de uma forma impiedosa, a desigualdade social.
Descriminalizar o aborto não é impor pontos de vista hegemónicos mas sim aprofundar a natureza democrática do Estado através do respeito pela diversidade de consciências e de vidas. Aqui reside a diferença fundamental entre os campos em confronto: enquanto que os signatários da proposta de referendo e os partidos que defendem a alteração do actual quadro legal respeitam a opção individual dos que se opõem à interrupção voluntária da gravidez ? não abortar ?, estes querem impor a sua posição, negando à mulher o direito de dispor do seu corpo.
 Apesar dos discursos algo apatetados em defesa do consenso em torno das grandes questões políticas, na do aborto, como em muitas outras, não é possível chegar a um compromisso entre a esquerda e os sectores mais reaccionários da sociedade portuguesa acantonados no PP de Paulo Portas. Daí que só exista uma saída: o confronto. É certo que a correlação de forças é muito desigual. Mas não nos deixemos intimidar. Contra a hipocrisia imaginemos novas e mais radicais formas de luta. Por cada julgamento, por cada mulher ou homem constituído arguido por suspeita de crime de prática de aborto, declare-se o nosso envolvimento. Quantos julgamentos por violação dos artigos 140º e 141º do código penal se teriam de fazer? O meu, o dos nossos pais, mães, irmãos, irmãs, filhos e filhas, o das nossas esposas, companheiras e namoradas, o de milhões de homens e mulheres, até que o sistema judicial entupisse e o país se cobrisse de vergonha.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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