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Um olhar sobre o Brasil

DESAFIOS NA EDUCAÇÃO

O Brasil vive hoje, inequívoca e ansiosamente, um importante momento de transição política e social. Num momento em que o Presidente Lula faz os primeiros ajustamentos na equipa governamental da área da Educação, nomeando Ministro da pasta, Tarso Genro, antigo Prefeito da cidade de Porto Alegre e grande impulsionador do Forum Social Mundial e do Forum Mundial da Educação, e com o descaramento de quem acompanha a vida política e educacional brasileira há mais de vinte anos, atrevo-me a provocar os muitos leitores brasileiros de A Página com aquilo que considero os grandes desafios da educação e da escola brasileira. Ao seu escrutínio crítico, aqui deixo este contributo.

O primeiro desafio que se coloca à educação brasileira é, então, o da consolidação da escola para todos.
Custa-me muito compreender as referências críticas à expansão escolar verificada na última década no Brasil, colocando em oposição expansão quantitativa e qualidade do ensino. O acesso à educação é um direito básico de todos os brasileiros, pobres, favelados ou sertanejos. Para muitas crianças, a escola ainda pode não ter significado aprendizagens; mas significa um lugar seguro, onde ao menos, pode ter uma refeição diária.
O caminho não será o de criticar ?a expansão desenfreada da escola?, pois isso significa questionar a frequência escolar por parte de crianças cujos pais nunca foram à escola, ou nunca pensaram que os seus filhos chegassem tão longe. Será talvez o de implementar, a nível municipal, estadual e federal, políticas públicas de discriminação positiva, dando mais a quem mais precisa. As melhores escolas, os melhores professores, as melhores equipas educativas, os maiores orçamentos, devem ser destinados para as regiões e localidades mais desfavorecidas.
Num país fortemente desigual como o Brasil, as políticas públicas devem ter como preocupação central a distribuição de riqueza. E a prioridade no investimento educacional é um dos modos possíveis de fazer essa distribuição de riqueza.
O segundo desafio que se coloca à educação brasileira é o de superar o dualismo entre a escola pública para os pobres e o colégio privado para as classes médias e superiores, a que se segue, em geral, a universidade federal (pública) para os jovens que frequentaram os colégios privados e a universidade privada para aqueles que vêm das escolas públicas, das redes estaduais e municipais.
A consolidação da escola para todos implica que se supere rapidamente esse perigoso dualismo que, se permanecer durante muito mais tempo na realidade brasileira, pode destruir uma sã convivência entre iniciativa privada ou comunitária e iniciativa pública ou estatal.
A procura dos colégios privados por parte da classe média resulta de um compreensível desejo de dar uma educação de qualidade aos seus filhos, nos planos das aprendizagens e do acompanhamento e segurança. A questão que se coloca é como alargar esse conceito de qualidade à rede pública.
Nesse sentido, e porque não se pode fazer tudo em simultâneo, penso que devia ser uma prioridade nas políticas municipais e estaduais a criação de escolas de excelência (não apenas nas instalações, mas igualmente no projecto educacional e nos apoios sociais), que sirvam de exemplo positivo e de demonstração de um potencial de mudança e transformação das relações sociais. Essas escolas de excelência devem situar-se em locais problemáticos, mas associados sempre a projectos com uma forte participação de movimentos comunitários, inserindo a escola em processos mais gerais de emancipação social.
O terceiro desafio situa-se no ensino superior. A existência de pólos de excelência deve também ser um objectivo das políticas universitárias e de investigação científica. A expansão do ensino superior implica, em meu entender, uma política pública dirigida em duas direcções:
(i) A progressiva introdução da pesquisa em todas as instituições de ensino superior, em particular nas universidades estaduais e da rede privada, o que implica a revisão da absurda política de ?reserva de mercado? na formação pós-graduada seguida por instâncias político-administrativas de âmbito federal (de que a CAPES é um triste exemplo), fortemente dominadas por interesses corporativos. O estabelecimento de parcerias entre instituições brasileiras, e entre estas e universidades estrangeiras, para a formação a nível de mestrado e doutoramento é um caminho que evitará a transformação da maior parte do ensino superior brasileiro num imenso colegiado superior, reprodutor de uma educação bancária de consequências fortemente negativas para a formação dos quadros científicos e técnicos que o Brasil necessita, nestes tempos de mudança permanente nos processos de trabalho e de evolução tecnológica.
(ii) Manter e estimular a criação de pólos de excelência nas universidades e centros de pesquisa, o que implica travar o ?sucateamento? das universidades federais, redefinindo possivelmente as suas finalidades e estruturas, e implementar um processo corajoso de incentivos à descentralização de competências e à fixação de massa crítica em regiões desfavorecidas, sob pena de aumentar ainda mais o fosso entre os estados do Norte e Nordeste e do Sul e Sudeste.
(iii) Diversificar a composição social, étnica e cultural das universidades federais (e estaduais) brasileiras, criando critérios e condições de discriminação positiva no acesso, de modo a permitir aos jovens provenientes das classes médias baixas e das classes populares, aos negros e a outros grupos étnicos subalternizados na sociedade brasileira, poderem frequentar, em condições dignas, as melhores instituições públicas brasileiras de que, historicamente, as élites se apossaram.
O quarto desafio situa-se ao nível dos modos regulação estatal. O Brasil, fruto ainda da sua matriz fundadora, é um país fortemente centralizado, onde quase tudo depende de Brasília. Os tempos de mudança são tempos de risco e de experimentação institucional que o Brasil não deve ter medo de trilhar. O excesso de regulação inibe e limita muito da iniciativa que na periferia do sistema nasce e se pretende afirmar.
No Brasil, como em muitos outros países, assiste-se a um interessante paradoxo: multiplicam-se os discursos sobre a autonomia, sobre a construção de projectos político-pedagógicos ancorados nas realidades locais, mas aumentam os controlos remotos. Publicam-se PCN que apelam à diferenciação pedagógica mas avalia-se de modo estandardizado. O Brasil é o país dos exames e das provas nacionais, dos provões.
Existe na sociologia crítica abundante literatura sobre os efeitos perversos dos exames nacionais e dos testes estandardizados. Haja a coragem política de encontrar outros modos de avaliação da qualidade das aprendizagens e das instituições, descentralizando responsabilidades e, sobretudo, valorizando tanto os percursos e os processos como os resultados, acreditando na iniciativa e nas potencialidades transformadoras do ser humano.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

António Teodoro
Univ. Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa
António Teodoro
Univ. Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa

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