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Fechar as escolas rurais: A socialização como argumento

O encerramento das escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico situadas em meios rurais continua a acontecer de forma tão acelerada quanto silenciosa, num processo que se tem vindo a desenvolver ancorado num conjunto de argumentos que são, até agora, objecto de uma aceitação tácita que importa questionar quer quanto ao seu conteúdo quer quanto às suas implicações concretas quer quanto aos riscos de uma tal atitude.
Não me perfilho no número daqueles que acreditam poder travar a desertificação do mundo rural através da manutenção no seu seio, e a todo o custo, das escolas que aí ainda existam. Não deixo, no entanto, é de estranhar que a reflexão acerca desta problemática se produza quer acentuando a dimensão negativa do papel educativo dessas escolas quer, concomitantemente, valorizando o contacto com outras crianças, em contextos educativos melhor apetrechados, como condição educativa incontornável que, só por si, permite superar todas as contrariedades de uma tal decisão. Não sei porque é que tão fácil afirmar que ?as crianças não devem estar em escolas com dois ou três alunos? e é tão difícil enunciar os riscos educativos do êxodo diário de dezenas de crianças rumo às escolas dos centros urbanos. Não sei porque é que só se reafirma esse isolamento, sem se referir e sem se ter em conta a qualidade de algumas experiências concretas que permitiram e têm vindo a permitir enfrentar esse problema, transformando-o num desafio que implicou romper quer com uma abordagem monolítica da gestão do tempo e do espaço escolar quer com uma visão normativa e normalizadora do acto de educar, as quais circunscrevem de forma excessiva tanto a noção de actor educativo como a de projecto de intervenção educativa.
É tempo de sermos capazes de promover uma reflexão mais exigente que nos possibilite pensar em soluções credíveis e plurais que não nos confinem à inevitabilidade das respostas que não são capazes de romper com as idiossincrasias e os padrões de funcionamento administrativo, curricular e didáctico em uso, de forma diversa, nas escolas deste país. Tenho consciência que este é um problema mais de carácter político do que de carácter pedagógico, da mesma forma que sei que os tempos que correm não são muito dados a utopias e ao desenvolvimento de projectos inovadores, situação que, contudo, não permite justificar o conformismo em que tendemos a atolarmo-nos em nome de um pragmatismo que, entre outras coisas,  impede qualquer tipo de reflexão  acerca da problemática em causa.
Só isso é que poderá explicar a ausência de interpelações acerca das condições de vida das crianças afastadas, a maior parte do dia, das suas comunidades de origem. Refere-se as condições logísticas que as beneficiam (o aquecimento central, a biblioteca e as salas confortáveis) mas quantos se questionam acerca das possibilidades dessas escolas se revivificarem como um espaço social quer no decurso do tempo escolar propriamente dito quer no âmbito das actividades que ocorrem nos seus tempos livres? Não se corre o risco de escolarizar este tempo imprescindível à vida das crianças? Quem assegura a qualidade dos projectos que acontecem neste âmbito? Como é que uma escola organiza tais programas? Quem são seus mentores? O que pensam as crianças sobre o assunto? O que é que garante que as escolas não sejam entendidas como uma espécie de parques de estacionamento dos alunos que provêm das comunidades rurais? O que é que garante que crianças tão pequenas, antes penalizadas pelo isolamento das suas comunidades, não sejam penalizadas agora pelo seu isolamento face a essas comunidades? Não sejam penalizadas, agora e também, pelo excesso de escola a que se encontram sujeitas?  Porque é que vivemos sem informações acerca da integração destas crianças nos novos agrupamentos escolares? Será que acreditamos que a socialização das crianças resulta de uma equação que se resolve, linearmente, defendendo-se que basta o contacto com mais crianças para que o problema da sua socialização deixe de constituir um problema?
É tempo de deixarmos de recorrer a uma visão tão simplista acerca do processo de socialização humana para justificar as medidas que a actual equipa ministerial tem vindo a implementar face à problemática das escolas do 1º CEB localizadas em meios rurais.
A socialização de uma criança é um processo mais vasto e complexo, depende, sobretudo, da qualidade das interacções com o meio físico, social e simbólico que a rodeia, depende da vivência que estabelece com outras crianças, mas também com os adultos e dos espaços de referência onde esses encontros acontecem. Um encontro que lhes permita construir-se como pessoa, um encontro que não se programa, já que depende das vicissitudes da vida e das necessidades da mesma. Um encontro feito de momentos rituais e canónicos, mas que se constrói, igualmente, através de momentos fugazes e surpreendentes. Um encontro que permita às crianças construir-se como um ser integrado numa comunidade, participando assim e também na construção dessa comunidade. Como é que os novos agrupamentos escolares lidam e gerem com um desafio tão complexo e difícil de enfrentar? Como é que se substituem à vida social autêntica que as crianças experienciavam nas suas comunidades de origem? Constituem, deste ponto de vista, a melhor solução? Constituem sempre a melhor solução? Não podem coexistir com outras soluções? Não seria interessante e necessário que coexistissem com soluções menos ortodoxas? Onde é que podemos encontrar uma reflexão explícita sobre este processo?
Porque é que se visa simplificar, através do enunciado de lugares comuns e de frases feitas, um processo que está longe de ser um processo linear? Talvez pelas mesmas razões porque ainda não assisti, ainda, à reivindicação do estabelecimento de um observatório que nos permitisse a todos a obtenção de dados capazes de suscitar uma reflexão que nos conduzisse a compreender a validade e o sentido das decisões tomadas, neste âmbito, quer pelo poder central quer pelo poder autárquico. 
Só a aceitação tácita de que a solução de retirar as crianças das suas aldeias é sempre a melhor solução é que poderá explicar o silêncio ensurdecedor que se faz sentir sobre esta problemática. É tempo de questionarmos tal atitude e de promover o debate, conferindo visibilidade às dimensões mais relevantes dos projectos que se encontram em desenvolvimento, sejam aqueles que ocorrem em Melgaço ou Alfândega da Fé sejam os outros, de carácter diferente, que acontecem, por exemplo, na escola da Ouguela, lá no Alto Alentejo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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