De uma forma geral, a crítica da arquitectura tem-se mantido manietada como durante o período moderno, pela ausência da dimensão antropológica. A arquitectura e o urbanismo continuam prisioneiros do fisicalismo tecno-funcionalista. Isto advém do facto das ciências do território se terem desenvolvido separadas das ciências sociais e também as próprias ciências sociais não terem compreendido a relação estreita entre sociedade e território, entre os lugares e as ideias. No entanto, a dimensão cultural e simbólica teve sempre os seus cultores: Bachelard e o espaço poético, Foucault e a topologia do poder, Goffman e os dispositivos institucionais, Edward Hall e a proxémia das culturas, Yung, Cassirer, Elíade e Durand e os espaços sagrados. Por outro lado, arquitectos e urbanistas plasmaram na sua obra, duma forma consciente ou não, formas plásticas simbólicas e de grande sentido cultural: Wright e Niemeyer. E o próprio Corbusier, mau grado o reducionismo dalguns dos seus textos panfletariamente racionalistas, não deixa de expressar o sentido simbólico e cultural, nomeadamente em Ronchamp, La Tourelle e Chandigard. Contudo, estas questões não pareciam relevantes na análise da história da arquitectura. Já quase nos anos oitenta, Linch mostrou como os mapas cognitivos determinavam a forma de apropriar e atribuir significado aos lugares da cidade, revelando a intuição de Heidegger, duma relação recíproca entre "construir, habitar e pensar". Matilde Pessanha revelou, neste livro sobre o arquitecto Siza, como é que a memória cultural e os contextos duma antropologia situada aparecem como matriz na criação do arquitecto. Assim, o gesto arquitectónico em Siza Vieira começa na vivência, no olhar e na apropriação da cultura e dos lugares, o que permite a singularidade da sua obra, em virtude do seu particular percurso de vida. Assim, a sua singularidade tem a ver com a tradição, com a paisagem portuguesa, com os mitemas da cultura lusíada, mas ao mesmo tempo essa singularidade abre-se à universalidade da dimensão simbólica dos lugares sagrados, de gestos arquetipais comuns à humanidade. Nos três monumentos analisados, Monumento aos Calafates (1959), Monumento a António Nobre (1980) e Monumento à memória das vítimas da Gestapo (1983), Matilde Pessanha explicita essas duas dimensões presentes na obra de Siza Vieira, o carácter singular e quase regional ao mesmo tempo que se revela o sentido universal. A Fonte do Bairro da Malagueira, em Évora e a Igreja de Sta. Maria no Marco de Canaveses, contêm também essa simultânea complementaridade entre o lugar e o tempo, entre a memória e a criação, entre a terra e o céu, entre a gravidade e a leveza, entre a raíz e a utopia. O livro de Matilde Pessanha revela assim um outro olhar sobre a arquitectura. Abre portas para uma metodologia transdisciplinar, aceitando como desafio a complexidade e relegando o espartilho redutor e positivista a que esteve sujeita a análise da arquitectura.
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