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O ovo da serpente

Pedem-me para comentar neste número de A Página da Educação o actual modelo de apoios educativos especiais no ensino público em Portugal. Parece-me importante começar por referir que o nosso país tem uma legislação adequada à realidade no terreno, que garante às crianças e jovens o direito de frequentar a escola regular em igualdade de circunstância com as restantes crianças. Porém, de acordo com alguma informação que metem chegado, o senhor ministro da educação anunciou estar em curso a preparação de uma nova legislação que o próprio considera ?polémica?.
Apesar das várias tentativas que os sindicatos da Fenprof fizeram no sentido de saber mais pormenores acerca desta legislação, até hoje, enquanto professora e dirigente sindical, não soube de mais nada em concreto. Porém, a avaliar pela Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) que está também a ser ultimada pelo actual governo - onde não são respeitadas as orientações emanadas da Declaração de Salamanca, que refere nomeadamente a necessidade de construção de uma escola inclusiva que integre todos os alunos com NEE, sejam elas de carácter social ou físico - , receio que a política de integração que até hoje caracterizava os apoios educativos e o ensino especial possa vir a ser alvo de uma política de retrocesso.
Mas não é necessário socorrermo-nos da Lei de Bases para se ter consciência desta orientação. Bastará olhar para a actual política de destacamentos dos professores de apoio especial, para a falta de equipas multi-disciplinares que garantam o apoio a estes professores nas escolas ou para a falta de professores especializados nas deficiências auditivas e visuais nas escolas da Grande Lisboa, para se perceber que ao longo dos últimos anos não foram criadas condições que satisfaçam os técnicos, as escolas e os pais ? que, cansados destas indefinições, acabam por matricular os filhos em instituições particulares.
Penso que o governo deveria ter a coragem política de assumir que não quer as crianças e jovens com NEE juntamente com as outras crianças nas escolas. O próprio ministro já veio dizer que os deficientes devem estar em instituições particulares e o discurso da secretária de estado vai no mesmo sentido, mas isso não é assumido claramente. O governo está a empatar esta questão, a desgastar-nos aos poucos e, no fundo, a criar as condições para que as crianças e jovens com NEE passem a ser encaminhados para instituições de apoio particulares.
Todo este processo faz-me lembrar um filme de Ingmar Bergman, O Ovo da Serpente, que funciona como uma boa metáfora de tudo aquilo que acabei de descrever: antes mesmo da serpente nascer já sabemos o mal que ela carrega dentro de si.

(Depoimento retirado a partir de entrevista)


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Maria Jorge
Professora de Educação Especial - 1º Ciclo do Ensino Básico
Maria Jorge
Professora de Educação Especial - 1º Ciclo do Ensino Básico

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