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Sobre a ciência que se aprende fora da escola e da academia

A argila pode estar na origem das células! A reposição de hormônio traz risco de asma! Bahia cria mosca para controlar ?praga? que causa o apodrecimento de mangas! Mulheres judias têm mais chance de desenvolver câncer de mama! Astronomia brasileira chega à primeira divisão! UFRJ patenteia ácido contra célula tumoral! China quer sua estação espacial em 2012! Flórida manda alimentar paciente em coma! Ecologistas cobrarão ação de Lula no Protocolo de Kioto! Pressionado, Irã pára de processar urânio! França endurece campanha contra o fumo! Comitê de Bush vê ameaça na biotecnologia! Estados Unidos descobrem doping que pode esvaziar Atenas!

Manchetes como as transcritas acima figuraram nas últimas semanas em diferentes seções de um jornal brasileiro de ampla circulação. É interessante considerar que todas podem ser associadas de alguma forma à ciência, mesmo que elas intitulem matérias que tratam de assuntos bastante diferenciados. Transcrevo-as, aqui, não apenas para marcar o espaço que a ciência ocupa hoje nas notícias dos jornais, mas, principalmente, para destacar as múltiplas dimensões, ações, decisões, temáticas, previsões, promessas, cuidados, preceitos morais, questões éticas, práticas, hábitos e sujeitos que a ela têm sido articulados. E, também, para registrar que tal articulação, processada e colocada em circulação diariamente nesses jornais, se dá em outras produções culturais como os programas de televisão e os anúncios publicitários. Ou seja, como Dorothy Nelkin (1995) referiu ? a ciência está na mídia! Mas ela está, também, na literatura, nos filmes (e não apenas nos de ficção científica) e nas revistas de variedades e informativas. Enfim, cada vez com maior freqüência e intensidade, essas pedagogias culturais, expressão que Henry Giroux (1995), Douglas Kellner (2001), Shirley Steinberg e Joe Kincheloe (2001) utilizam para designar essas produções da cultura e o seu efeito educativo, vêm nos ensinando ciência e, ao mesmo tempo, como postulam os praticantes de Estudos Culturais da Ciência, produzindo-a discursivamente! Caberia, então, perguntar - que significados, atributos e atribuições têm sido conferidos a essa ciência produzida/instituída fora dos consagrados limites das instituições científicas? E, também, se nesse processo, inscrito em tantas articulações e relações de poder, configura-se uma ciência deturpada, desfigurada e descaracterizada? Enfim, uma ciência desprovida das qualidades que a elevaram à posição de uma das mais importantes criações de nosso tempo? As dimensões deste artigo apenas me permitirão ensaiar algumas poucas considerações sobre tal tema, mas, certamente, a ciência configurada nesses textos ganhou significados e atributos diferentes e até bem distanciados daqueles que filósofos como David Hume, John Stuart Mill, Karl Popper, entre outros tantos, lhe foram atribuindo em seus legitimados escritos. Na ciência representada nas manchetes citadas acima, o levantamento e a busca de respostas para questões que há muito tempo intrigam os humanos ? sua origem, a origem do mundo e do universo, por exemplo, - está indicada. Mas há muitas outras representações: invoca-se a ciência para intervir no controle dos efeitos de suas próprias práticas; destaca-se que ela é um importante e produtivo empreendimento político e econômico colocado em curso por nações, estados e instituições - nesse caso, ela não é nomeada, a nação, os estados ou as instituições a representam! A ciência está, também, no cerne de conflitos internacionais, nacionais, regionais e locais processados em diferentes âmbitos ? a metáfora dos campeonatos esportivos é usada para destacar o avanço de uma área de conhecimento - e a sua articulação à ética lhe exige lidar com decisões relativas à vida e à morte. Além disso, à ciência também cabe oferecer instrumentos de controle que permitam a identificação do traço mínimo, daquilo que não é suspeitado, do que resistiu à detecção das mais sofisticadas fraudes. Enfim, fora das salas de aula, nas quais a ciência é usualmente associada a método, descoberta, criação e ao mito do encontro da verdade, a ciência é também todas essas coisas! Ora é esperança, como salientou Ripoll (2000), ora um poderoso e rentável empreendimento produtivo, mas que também se pode tornar calamitoso, ora instrumento de salvação, ora de cuidado, ora de assombro, ora de expectativa e de tensão, ora de registro e de encontro do inesperado e do incontrolável! Então, é preciso ter cuidado, pois como está indicando o ?Comitê Bush?, não se sabe mais, exatamente, quais efeitos suas práticas acarretarão. E é preciso novamente perguntar: que ciência é mesmo essa que está na mídia? Desfigurada, deturpada? Ou, então, da forma como está delineada, estaria ela, apenas, incorporando significados e representando muitas das contradições e incertezas desses chamados ?tempos pós-modernos??

Referências Bibliográficas

  • GIROUX, Henry.Praticando estudos culturais nas Faculdades de Educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu. (Org.). Alienígenas na sala de aula. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • KELLNER, Douglas. A Cultura da mídia ? estudos culturais: identidade e política entre o moderno e pós-moderno. São Paulo: EDUSC, 2001
  • NELKIN, Dorothy. Selling Science. How the Press Cover Science and Technology. USA: Freeman and Company, 1995.
  • RIPOLL, Daniela. Não é ficção científica, é Ciência: a Genética e a Biotecnologia em revista. Porto Alegre: UFRGS, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2000. Dissertação de Mestrado
  • STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. (Orgs.) Cultura Infantil ? a construção corporativa da infância. Trad. George Eduardo Brício. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Maria Lúcia Castagna Wortmann
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil, coordenadora do Grupo de Estudos de Educação e Ciência como Cultura (GEECC)
Maria Lúcia Castagna Wortmann
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil, coordenadora do Grupo de Estudos de Educação e Ciência como Cultura (GEECC)

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