Página  >  Edições  >  N.º 130  >  Alguns fios da rede de conhecimento: tecnologia, cotidiano e afeto.

Alguns fios da rede de conhecimento: tecnologia, cotidiano e afeto.

?O amor é a emoção que constitui as ações de aceitar o outro
com um legítimo outro na convivência.?
Maturana, 2002

A tecnologia faz parte de nosso cotidiano em vários espaços/tempos, mas como isso acontece e como lidamos com isso? Partindo de nossas próprias práticas, como diz Barbosa (2002): ?(...) cada produto (e/ou regra) comporta tantas formas de uso quantos são os sujeitos que o utilizam?.(1) E muitas vezes a objetividade científica não consegue ver e ou reconhecê-las. Volto à cidade de Ji-Paraná (no interior de Rondônia, BR), onde trabalhei como Orientadora Pedagógica do projeto SESC-LER(2) (alfabetização de jovens e adultos).
No início da implementação do projeto, para divulgá-lo, utilizei vários recursos disponíveis na cidade. Dei entrevistas às rádios, à televisão, mas descobri que, talvez, a ação mais eficaz seria a fórmula mais antiga: bater de porta em porta explicando o projeto. Fui até onde trabalhavam, sob sol ardente, grupos de pessoas, limpando e roçando as ruas. É provável que isso seja impossível de imaginar no nosso cotidiano urbano, mas lá isso era muito importante e significativo.
A turma teve início com 26 alunos, entre 20 e 66 anos de idade, e em poucos dias percebi que não seria suficiente ensinar a ler e escrever. As necessidades de alfabetização eram outras, bem maiores... Como diz ALVES (1998)(3)
?É preciso compreender, ainda, que aos contextos cotidianos correspondem processos educativos múltiplos que estão presentes nos diferentes e diversos espaços/tempos, institucionalizados ou não, de educação e de tessitura de conhecimento?
Um estudante estava faltando muito às aulas. Quando retornou, conversamos e pedi que me telefonasse, quando precisasse faltar.
? E eu lá sei mexer com esse troço, professora? ? disse ele.
? Como, Seu Francisco? O senhor não sabe usar o telefone?
? Eu não! Ainda mais agora com esse tal de cartão!
Fiquei pasma, acho que por alguns segundos. Mas logo disse, sorrindo:
? Bom, então vamos resolver esse problema. Alguém mais não sabe usar o telefone?
Outros levantaram a mão e percebi que alguns ficaram com vergonha. Mas sabia que, de alguma forma, eles utilizavam essa tecnologia. Então perguntei como o faziam, e as respostas revelaram que dependiam do auxílio de outras pessoas, e para isso andavam com uma ?cola? do número no bolso.
Eles não dominavam recursos tecnológicos da modernidade do modo convencional, mas os desafios faziam com que descobrissem outros usos e formas alternativas de lidar com a tecnologia, sobrevivendo e superando o analfabetismo funcional e tecnológico a que eram relegados. Mas era visível que, na sociedade letrada e tecnologizada em que vivemos, o que restava para eles era ficar à margem e dependentes.
Fui para casa ainda perplexa. O que fazer para transformar essa situação? Por que aquilo me causou tanta perplexidade? Empenhada em ensinar a leitura e a escrita, não imaginava que, tão próximo de mim, havia tantas pessoas que não sabiam utilizar uma tecnologia, para mim banal, trivial, do século XIX! Porém fiz um paralelo com minha própria resistência, naquela época, ao uso do computador, e vi que todo aprendizado se dá na dependência das necessidades e dos desejos. O novo e o velho dependem da história de cada um: para mim, utilizar o telefone era algo velho, normal, enquanto o computador era o novo, que me desafiava a reconstruir meus saberes.
No dia seguinte, levei para a sala de aula um aparelho de telefone. Quem conseguia concluir todas as etapas de discagem com sucesso, adquirindo a autonomia, seguia para o ?orelhão? que havia no prédio. Juntos, víamos como aguardar a linha, como colocar o cartão e o que mostrava o visor. Então, Dona Maria Aparecida pediu para ligar para a filha, que morava em outro Estado. Falamos sobre o processo de ?Discagem Direta à Distância?, descobrimos os códigos das cidades e partimos para a prática. Ela pegou o telefone e foi fazendo tudo que havia aprendido. Sua mão tremia e eu falava: ?Calma, a senhora vai conseguir?.
? Está chamando! ? disse, excitada. Fulana de tal, sou eu, sua mãe! Eu liguei sozinha, aprendi aqui na escola, com a professora!
As lágrimas correram no seu rosto, no meu, no de alguns colegas, e todos bateram palmas. Naquele momento, um telefone público era o centro das atenções, a fera a ser dominada numa arena só nossa, e a platéia vibrava pela libertação da colega, ao dominá-lo. Naquele instante, construímos um registro inesquecível na vida do grupo. Agora todos podiam dominar aquela tecnologia e saborear o prazer da autonomia.
Se a escola é espaço privilegiado da construção do conhecimento, deve estar inserida no cotidiano de seus atores/sujeitos, novas linguagens, possibilitando o exercício da cidadania. Mas, nunca deixando de valorizar as histórias, trajetórias e subjetividades de cada indivíduo.

Notas

1) BARBOSA, Inês de Oliveira. A rebeldia do/no cotidiano: regras de consumo e usos transgressores das tecnologias na tessitura da emancipação social. In: Subjetividades, tecnologias e escolas. Leite, Márcia ; FILÉ, Valter (orgs.). Coleção: O sentido da Escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
2) Projeto desenvolvido pelo SESC Nacional, desde 1999. Atua em vários estados das regiões Norte e Nordeste.
3) ALVES, Nilda e GARCIA, Regina L. ( orgs). In: Trajetórias e Redes na Formação dos Professores. O sentido da escola. Rio de Janeiro: DP&A, Editora, 2000.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Aldenira Mota do Nascimento
Professora de 5a. a 8a séries da escola Oga Mitá, RJ. Integra o grupo Redes de Saberes em Educação e Comunicação: Questão de Cidadania da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ
Aldenira Mota do Nascimento
Professora de 5a. a 8a séries da escola Oga Mitá, RJ. Integra o grupo Redes de Saberes em Educação e Comunicação: Questão de Cidadania da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo