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O orientalismo americano

Quando Napoleão ocupou o Egipto, em 1798, sabia o mínimo indispensável para que um imperador culto estivesse informado sobre o país que pretendia ocupar, com o menor número possível de baixas no seu exército e de reacções por parte do povo avassalado.
Incorporado então no Império Turco, o Egipto atravessava um período depressivo da sua longa e fulgurante história, no momento em decadência económica e social, mas ainda bastante estruturado nos seus valores culturais para que Napoleão não achasse suficientes as aplicações estratégicas e tácticas do seu poderoso exército.
Leu tudo quanto estava ao seu alcance a respeito da história do povo que iria submeter, ouviu os estudiosos e, quando resolveu avançar sobre o Cairo, fez-se acompanhar de especialistas que, terminada a guerra, iriam ser os mediadores das duas civillizações em presença e os garantes de que a França (acabada de sair de uma Revolução popular) não atentaria contra o direito de o Egipto manter a sua dignidade nacional.
Mas quando, depois da campanha do Médio Oriente, Napoleão se voltou para os países da periferia da Europa - Espanha, Portugal e Rússia - negligenciando a capacidade de resistência dos seus povos, manifestada em acções de guerrilha, de terra queimada e de recuos estratégicos, o poderoso Napoleão foi obrigado a retirar, vencido e humilhado. Dos 550.000 soldados que invadiram a Rússia e encontraram Moscovo a arder, apenas regressaram 20.000, sobreviventes dos ataques da guerrilha e dos rigores do Inverno.
Diferentemente do que fizera no Egipto, Napoleão subestimara o espírito "nacionalista" daqueles povos "atrasados" e (sendo ele filho de uma Córsega ciosa da sua identidade"!) negligenciara a evidência histórica de que a aceitação dos modelos civilizacionais "superiores" se faz sempre por meio de experiências, cotejos e decantações, nunca por imposição de um modelo inculcado como o melhor para todos. Sobretudo quando, em países multiétnicos e multiculturais, o "nacionalismo", embora exprimindo um comum sentimento de "pertença" a um dado território, não despreza o facto de que a coesão do todo vem do reconhecimento de que o espírito verdadeiranmente unitário reside na plena representação da cultura das partes.
Bush, no Iraque, não é Napoleão, no Egipto. Sê-lo-á na pior fase da sua cultura "orientalista", como chamou o especialista em teoria literária e estudos orientais, falecido recentemente, Edward W.Said, palestiniano naturalizado americano e professor da Universidade de Columbia, ao conhecimento distorcido e à visão deformada que europeus e americanos - desde o princípio das Cruzadas até ao fim do Colonialismo, continuando hoje nos seus herdeiros - formaram sobre os povos "exóticos" e "atrasados" do Oriente.
Se Bush ou os seus conselheiros e apoiantes tivessem lido Said, e outros como este, designadamente o seu mais famoso livro, "Orientalismo" (editado, pela primeira vez, nos Estados Unidos, há 25 anos, e que em Portugal, onde já foi anunciada a publicação, se pode ler em português do Brasil); depois dos insucessos verificados em intervenções político-militares noutras regiões, devidos à displicência com que foram olhados e avaliados os povos intervencionados (o Vietname é o primeiro trágico emblema), o Iraque não seria para os Estados Unidos mais outro emblema da sua desastrada política napoleónica, mesmo se proclamada em nome de uma Civilização que se proclama libertária, mas de cuja bondade os iraquianos têm o direito de duvidar quando o Libertador começa logo por destruir impavidamente os símbolos de uma cultura milenária, através de cujos filósofos, historiadores, poetas, artistas, matemáticos, astrónomos, médicos, arquitectos (Avicena, Algazel, Abubacer, Averróis, Zirjab, Maussili, etc.), a Europa sob domínio árabe, - incluindo Portugal - conheceu uma cultura que, já sendo cadinho de outras, - grega, persa, hindu,etc. - abria os primeiros caminhos para a Modernidade.


  
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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