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Sobre os mortos que não nos deixam conhecer

UM INSTITUTO AMERICANO ESTIMA QUE, NO IRAQUE, TENHAM MORRIDO ENTRE TREZE MIL E CATORZE MIL PESSOAS DURANTE A PRIMEIRA FASE DESTA GUERRA QUE ESTÁ EM CURSO. NÃO NOS DÁ OUTRAS INFORMAÇÕES. NÃO NOS DIZ QUANTOS ERAM OS HOMENS, MULHERES E CRIANÇAS. NÃO FAZ A DISTRIBUIÇÃO DOS MORTOS POR IDADES. AVANÇA UM NÚMERO. NÃO REFERE LÁGRIMAS. 

Sobre os mortos iraquianos, o instituto americano que estimou o seu número, não faz sequer o estudo estatístico. Menos ainda a apreciação moral, ética, comportamental provocada por estes treze ou catorze mil mortos estimados. Não sabemos se têm família, apenas podemos adivinhar que sim. Não sabemos como reagiu a família destes mortos. Como foram os funerais. Que lágrimas e que choro provocaram. Não sabemos se houve crianças a chorar por verem o pai, a mãe, algum primo, algum tio, o avô, a avó,  algum amigo morto. Nem sabemos se houve lágrimas de mães, ou de pais no funeral dos filhos. Não sabemos que jovens morreram, que amores se perderam. Destes mortos iraquianos não sabemos nada. Não temos deles nenhuma notícia, nenhuma imagem. Não existem, nem na nossa consciência, nem sequer para fins de estatística.
Não nos dizem nada dos iraquianos que porventura tenham sofrido ferimentos graves. Adivinhamos que sim, que deve ter havido feridos. Lembramo-nos apenas de uma criança que nos foi mostrada, para fins de propaganda, sem braços, sem pernas, de corpo decepado e queimado. Um corpo decepado quando brincava com os primos no quintal da sua casa. Não sabemos nada dos feridos mas, por semelhança com outras guerras, adivinhamos que serão três, quatro, cinco vezes mais que os mortos. Costuma ser assim, por cada morto a guerra deixa no terreno meia dúzia de feridos muito graves. Cinquenta, sessenta, setenta mil feridos graves iraquianos? Não sabemos. Ninguém nos diz nada. Ninguém nos mostrou nada. Também aqui, não sabemos quantas mulheres, quantos homens, quantas crianças. Não sabemos que rapazes, que raparigas ficaram feridas, que velhos, que mães, ficaram inválidas, desfiguradas. Estas dezenas de feridos, de inválidos, de mutilados, não têm direito a um tratamento estatístico, menos ainda moral, ético, comportamental.
Os mortos e feridos iraquianos nem sequer ganharam o estatuto dos números. Não existem. Não são heróis, nem vítimas. São uma inexistência. Uma ausência na nossa consciência de ocidentais. Os donos do poder imperial querem estes mortos e feridos fora da nossa consciência.
A Guerra do Iraque deixou no entanto, à luz do dia, alguns mortos. Os nossos, os de cá. Apesar da vontade do império em esconder, em ocultar, sabemos, dia a dia, o número exacto dos mortos americanos, ingleses ou italianos. Por causa da propaganda e das eleições americanas que se perfilam no horizonte e também da continuação da destruição e da matança, sabemos pouco das lágrimas dos parentes dos jovens americanos que já morreram. Bush proibiu a comunicação social de se aproximar do aeroporto e do cais de desembarque dos cadáveres americanos. E decidiu esconder da opinião pública as cerimónias fúnebres. Sabemos mais, um pouco mais, talvez pela novidade e pelo temperamento, das lágrimas dos parentes dos jovens italianos mortos.
Ainda assim, os nossos, os de cá, têm direito a estatística e a estatuto. Têm nome. Têm idade. Têm família. São vítimas e são heróis. Têm direito a funeral, a bandeira, a padre e a bispo, a representantes do poder, a honras, ao nosso pesar e   reconhecimento. A nossa comunicação social, trabalha para que eles fiquem na nossa consciência, como vítimas, como trabalha, para que dos outros, fique a sua ausência, um vazio a ser preenchido pelos fantasmas do mal.
Não é só aos mortos que se faz este tratamento desigual. Os vivos sofrem a mesma discriminação. O lado de cá está cheio de protagonistas, de gente que se afirma boa, com nome e recomendável. Uma chusma de gente com direito a opinar, a defender ideias e ideologias, a rotular atitudes, a falar desprendidamente sobre as razões técnicas, políticas e morais desta guerra.
Os do lado de lá são rotulados de «feios, porcos e maus». Não são pessoas. Não são vidas. Não são alegrias, tristezas e dores, nem amores. São uma coisa. Uma abstracção. Uma ideia má. São corpos a varrer da face da terra.
Nada sabemos do que pensam os do lado de lá. O que levará rapazes e raparigas árabes a deixarem que lhes atem ? ou a atarem ? ao corpo quilos de explosivos, e a fazerem-se explodir em esquadras e quartéis iraquianos? Como são esses jovens? Quem são? Que razões aduzem? Porque trocam o amor a vida pela morte? Que desesperos carregaram antes de carregarem os explosivos? Que amor ou desamor têm pela família? Que amores viveram? A que renunciaram? E os que pegam em armas e expõem a vida  contra as tropas ocupantes, porque o fazem? O que pensam? O que sentem? Era isto, e muito mais, que eu gostava de saber. Mas dizem-nos apenas que são uma abstracção, o mal em forma de gente, monstros, terroristas.
O dicionário diz-nos que terrorista é alguém «que recorre à violência como meio de coacção para fazer impor determinados objectivos geralmente políticos». Se é assim, quem são os terroristas de hoje? Os que usando a força bruta invadem, ocupam países e matam e destroem, sem dó nem piedade, em nome de uma ideia, de uma ideologia, de interesses políticos e económicos? Os que se defendem? Os que reagem com violência quando são humilhados e espezinhados? Os que se revoltam perante a visão dos mortos, dos feridos, da destruição, da humilhação? Quem são os patriotas? Os que invadem e destroem pátrias? Os que defendem a sua?
A comunicação social, agora no poder, assume funções contrárias à verdade, à liberdade de conhecimento, de escolha e de crítica. Mais do que revelar-nos a realidade, ocultam-na. Mais do que informar, permitindo que formemos uma consciência crítica de acordo com a realidade que nos envolve, esconde essa realidade e deforma a nossa consciência. Esconde a onda e mostra-nos apenas ? e só quando convém ? a espuma efémera que ela provoca.
E nós, a comunicação social pobre e modesta, ficamos nesta angústia de falta de meios, nesta incapacidade para ir onde devíamos ir,  para saber e dar a saber,  os vários lados da vida ou a realidade que nos envolve.
Aos mortos, aos ferido iraquianos e às suas famílias e amigos, ao povo iraquiano em geral, a todos os outros milhões de mortos de outros mundos e guerras  como as da fome, da doença, da falta de educação e de trabalho, as nossas desculpas, por não sermos capazes de arranjar meios de os revelar, de lhes dar voz e de os trazer à nossa consciência e à consciência do mundo.
Desculpem este silêncio pesado a permitir todas as calúnias. Oxalá [Ua xã illãh = e queira Deus] que um dia possam todos dispor de si próprios e ser livres e felizes.

PS: Ao povo iraquiano, as minhas desculpas por, simbólica e estupidamente, também nós portugueses, lhes termos invadido a casa com cerca de cento e vinte guardas da GNR.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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