Nesta fase de depressão económica que o País atravessa, não seria grave que um poeta nostálgico dos mitos do passado, acometido por um acesso de pessimismo perante a ameaça de um abaixamento significativo do nível de vida da maioria dos portugueses, se deixasse tomar pela velha ideia de que a solução para as crises nacionais está no "regresso" ao Mar Oceano - isto é, à América e à África. Seriam restos de uma espécie de pandemia histórico-literária que grassou até ao fim do Estado Novo e que este sustentou com plena eficácia, incutindo no espírito dos portugueses a presunção anestesiante de que o Mar (por metonímia do Ultramar e da Colonização) fazia parte do seu destino histórico de "povo marinheiro". Apoiava-se a propaganda do Regime em leituras avulsas de poetas maiores como Camões e Pessoa e em antropólogos como Jorge Dias, que preleccionava ter a cultura portuguesa "um carácter essencialmente expansivo, determinado em parte por uma situação geográfica que lhe conferiu a missão [o sublinhado é nosso] de estreitar os laços entre os continentes e os homens". Já poetas como Torga ("Mar!/Enganosa sereia rouca e triste!/Foste tu quem nos veio namorar,/E foste tu depois que nos traíste!"), agarrado ao terrunho natal como molusco à lapa, sendo ele próprio um ex-emigrante que, na adolescência, comera o pão que o Diabo amassou durante a sua episódica estada em Minas Gerais, não serviriam para dar cobertura à "tradição" que preferia expulsar da pátria os filhos "excedentes" a ter de mexer nas anquilosadas estruturas profundas da Nação, - produtivas, educativas, organizativas - a qual, entretanto, ia vendo as aldeias cada vez mais despovoadas, os campos incultos e o País sujeito a importar do estrangeiro uma grande parte dos bens essenciais de que necessitava para manter a "casa portuguesa", com "pão e vinho sobre a mesa", - pobrete mas alegrete - ainda assim apoiada nos aforros dos emigrantes e nas mais-valias extraídas dos mercados coloniais. Mas já será preocupante que, não sendo poetas, alguns dos nossos actuais governantes comecem a falar em "atlantismo" e "vocação oceânica" como sendo atributos naturais dos portugueses. Se estas presunções se destinam a estimular relações comerciais com povos que outrora colonizámos e que, falando a mesma língua, perspectivam maiores facilidades de contacto, dir-se-á que Portugal, não podendo aspirar à imposição de práticas neocoloniais, como sucede com as superpotências que regulam os termos do sistema económico transnacional vigente, também dito globalizante, tem condições peculiares para tirar proveitos dum relacionamento sério e reciprocamente vantajoso, dentro ou à margem desse sistema com contornos sinistros. Mas se tal retórica, por outro lado, serve de estímulo àqueles portugueses que estão a "emigrar" para as praias edénicas do Brasil, onde se implantam condomínios turísticos ao ritmo com que se alienam bocados da Pátria aos espanhóis (e não só) para o plantio de oliveiras (!), como sucede hoje no Alentejo, então o fantasma de Torga, agora acompanhado pelo de Catarina Eufémia, virá do outro mundo para aterrorizar os que, depois de Abril, primeiro faziam o coro contra o Ultramar e proclamavam o regresso à Europa, depois reclamavam contra a Reforma Agrária, por fim defendiam a integração incondicional na União Europeia. Talvez agora, fugindo ao "nevoeiro" lusitano e "reconquistando a Distância" de que falava Pessoa; desfrutando as alegrias do reencontro com a sua "vocação oceânica", sob a égide de Cabral e de Caminha, lhes sobre tempo para reflectir sobre o que é preciso para realmente "cumprir Portugal", relendo o último e amargurado Diário de Torga: "Abolição de fronteiras. Livre circulação de pessoas e bens. Ocupados sem resistência e sem dor. Anestesiados pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira."
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