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É esta a Hora?

Os repetidos e quase  dramáticos apelos que o Presidente da nossa República vinha fazendo à auto-estima  dos portugueses, já num momento crucial da situação económica do País, mas  ainda não agravada com a ocorrência  da  mais terrível e incontrolada vaga de incêndios de que há registo, com o seu corolário de  perdas em vidas humanas, habitações, campos e florestas - descolaram da nossa memória literária o último poema da Mensagem de Fernando Pessoa, intitulado "Nevoeiro", que  termina com um grito lancinante  que tanto soa a  apelo  como a crítica: "É a hora!"
Então (o livro saiu em 1934, quando o Estado Novo apostava na mobilização   do orgulho nacional), sentindo que o seu Povo, herdeiro de  uma história secular de audácia e  determinação, estava a desfigurar-se  no "fulgor baço da terra/que é Portugal a entristecer", clamava: "Tudo é incerto e derradeiro./Tudo é disperso, nada é inteiro./Ó Portugal, hoje és nevoeiro.../ É a hora!"
Também aquele "grito" de Jorge Sampaio -"Há mais vida além do Orçamento!"-, lembrando o de outro "homem do leme" face ao Mostrengo, ao "chamar Aquele que está dormindo/E foi outrora Senhor do Mar", pode ser ouvido como um apelo crítico dirigido  à consciência colectiva dos portugueses, para que  "a chama do esforço se remoce e outra vez conquistemos a Distância - do mar ou outra, mas que seja nossa!"
Sendo hoje outras as "distâncias" ainda possíveis de conquistar (Pessoa reajustaria aos novos tempos aquela exortação de que "cumprido o Mar, desfeito o Império, só falta cumprir-se Portugal"),  não mudou, todavia,  o "nevoeiro" que, em vários períodos da história nacional, ressurge como uma armadilha montada  por um obsessivo  e satânico  Mostrengo que quisesse  pôr à prova, em momentos nevrálgicos, a capacidade de resistência e  determinação dos portugueses para ultrapassarem   crises cíclicas que se diriam próprias de um "processo histórico"  sem final à vista,  como  foram as de  1383, 1580, 1890, 1910, 1926, 1974...   
Por isso,  mesmo quem, como o Poeta da Mensagem,  confia em que "a chama que a vida em nós criou/ se ainda há vida ainda não é finda" mas teme que não exista mais "o porto sempre por achar", há-de entender que é chegada a Hora da grande reflexão nacional, porventura a Hora última de encarar, como uma rendição ou como um desafio diante do novo Adamastor que é a Globalização, a Verdade que Pessoa  não teve tempo de balancear: que nada mais está Encoberto, que não haverá Quintos Impérios, que o Mar e a Saudade não serão jamais  Acto e  Destino, que "Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal/A mão que ergueu o facho que luziu" - Portugal, hoje, talvez como nunca constrangido por factores internos e externos,  torna a estar posto perante  si mesmo: um dos países técnica, económica  e  culturalmente mais desguarnecidos da Europa ocidental,  exigindo, certamente mais por um profundo exercício de autognose do que por uma nomeação das culpas, - que são seculares e colectivas: as da improvisação, do escapismo, do deixa-andar e seja o que Deus quiser - uma decisiva  e suprema determinação: como a Fénix mitológica,  renascer das cinzas da fogueira ( por  ela própria provocada) e escolher o rumo  certo e seguro dos futuros voos.
Alegar, em jeito de desculpa ou resignação, como preleccionava paternalisticamente o antropólogo Jorge Dias, nos anos 50, que o Português "é um povo paradoxal e difícil de governar.Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento"  - é o mesmo que meter a cabeça na areia, como faz o avestruz, e esperar que a tempestade passe. Até ao próximo "nevoeiro".


  
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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