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Educador e professor: intelectual ou servente de gestor?

O GOVERNO DECIDIU SUBSTITUIR A LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO. ESTAMOS CONFRONTADOS COM UMA PROPOSTA DO GOVERNO DE LEI DE BASES DA EDUCAÇÃO E DE QUATRO PROPOSTAS DOS PARTIDOS DA OPOSIÇÃO. ESTAS PROPOSTAS, MAIS DO QUE DE UMA ANÁLISE TÉCNICA, MERECEM DOS PROFESSORES UMA ANÁLISE POLÍTICA.

Um terço da proposta do Governo refere-se à «exposição de motivos», ou seja, é discurso ideológico. E é neste discurso que assentam os outros dois terços do texto que regulamentam a Lei. Na proposta do Governo fica patente um modelo de aluno a formar e um modelo de sociedade a desenvolver. Somos todos chamados a opinar sobre estes dois modelos. Digo já que rejeito ambos. Não estou interessado em formar pessoas, que mais do que cidadãos, sejam meras peças da engrenagem  produtiva. Que em vez de aprenderem a responder aos desafios políticos, económicos, cívicos e culturais, aprendam apenas a adaptar-se, qual ferramenta, ao posto de trabalho. Não me interessa educar para desenvolver uma sociedade que em vez de ser solidária seja apenas instrumentalmente competitiva. Uma sociedade onde a vontade de ajudar o outro seja substituída pela vontade de esmagar o próximo.
A Lei de Bases do Governo é darwinista. Para eles o mundo avança através da pura competição, do esmagamento dos mais fracos e do triunfo dos mais fortes. É para esse mundo competitivo, baseado na avaliação e na punição, na cenoura e no cacete, que querem educar as novas gerações. Prefiro um mundo que avança de acordo com a vontade humana e não de acordo com os ditames do mercado capitalista. Prefiro um mundo que avança pela afirmação das potencialidades de todos e não pela força e pela agressividade de alguns.
São, portanto, diferentes visões da educação, do mundo e do que deve ser a história da humanidade que estão em confronto nestas propostas de Lei de Bases. Se nos ativermos apenas aos aspectos técnicos das propostas, perdemos o fundamental e entramos no jogo e na lógica que as sustenta. Não estou interessado nisso.
Hoje educar, continua a pressupor que seja do senso comum entender que as relações capitalistas são incapazes, pela sua própria natureza, de corresponder ao conjunto de direitos fundamentais de todos os seres humanos, a começar  pelo direito a uma vida de que a dignidade não esteja ausente, à saúde, à educação, à habitação, ao emprego, ao poder de opinar com consequências, ao lazer, etc.
Nesta sociedade capitalista, na sua fase mais evoluída de desenvolvimento científico e tecnológico, o modo mais avançado de promover a acumulação de capital é o de permitir ao capitalismo refazer as suas taxas de lucro à custa da exclusão dos direitos mínimos de dois terços da humanidade. Hoje, sob o domínio capitalista, não há futuro para milhões de seres humanos. É este modelo destrutivo de amplas camadas da população em cada  país, e por acumulação no mundo, que o modelo social subjacente à proposta do Governo defende. O seu paradigma é: «excluam-se e liquidem-se os mais fracos para que os mais fortes sobressaiam».
Não estarmos contentes com a Lei que temos, com o modelo de escola em que trabalhamos e com os resultados que nela obtemos, não significa aceitar mudar para pior. Estamos todos convocados a contribuir para criar uma outra escola que seja capaz de contribuir para a igualdade e a justiça social. Estamos convocados a encontrar uma outra escola que seja capaz de permitir que cada criança encontre nela os meios que lhe permitam desenvolver todas as suas capacidades. Estamos convocados a construir uma escola que dê «a cada um segundo as suas necessidades e peça a cada um segundo as suas capacidades». Estamos convocados a construir uma outra escola que acolhendo a diversidade cultural de cada aluno, faça dela um trunfo para o desenvolvimento de todos. O que o modelo de escola contido na proposta do Governo defende é o contrário disto. Para eles o importante é estabelecer o padrão, as normas com que todos se devem conformar e, posteriormente, eliminar os que não se adaptam às normas e aos padrões convenientes,  ao poder dominante. Em vez de uma escola que se assuma igualitária na diversidade cultural e desenvolva em todos o máximo das suas capacidades, preferem uma escola elitista, que estratifique os alunos em camadas sociais, e forme  contingentes para os diferentes patamares sociais e do emprego. Um largo contingente de deserdados e de pobres e uma minoria de ricos e prendados. Eis mais elementos do paradigma governamental.
A falta de formação teórica e política dos professores fá-los correr o risco de reproduzirem os discursos retóricos que lhe são impostos, e de se conformarem com a função de meros executores  de tarefas planeadas por outros. A proposta do Governo aponta neste sentido. Espera que os educadores e professores se rendam e se assumam como meros «técnico-profissionais» que executem e ponham em andamento as orientações e os programas pensados por outros. Sugere que se avalie a sua capacidade de execução técnica. Propõe que se recompensem os que mais docilmente servem o sistema montado e se punam os que actuem de forma diferenciada. Propõe que a escola se organize com base num pequeno número de mandantes com poder e numa grande massa de serventes sem poder. Este modelo é contrário ao que designamos por profissionalismo docente. É um modelo que visa a destruição dos direitos e dos deveres profissionais dos professores, um abaixamento do seu nível profissional e social, a redução da profissão a funções meramente instrumentais. Trata-se de promover a proletarização da profissão docente.
Uma nova Lei de Bases, no campo da formação de professores, devia investir maximamente na formação inicial e na entrada na profissão. O esforço avaliativo deveria ser centrado a montante e não a jusante da carreira.  Avaliar as condições e a qualidade da formação inicial e a entrada na carreira,  é mais importante do que avaliar as contingências que decorrem da acção educativa dos professores. Como é fundamental avaliar as condições de trabalho e a actividade dos responsáveis pela formulação e administração das  políticas educativas.
A formação inicial devia ser pensada tendo em conta que o educador e professor, para o ser, tem obrigatoriamente de possuir os conhecimentos e as capacidades inerentes à sua função de educador e  intelectual. Não é isso que reza a proposta Governamental. Nela, aposta-se na desqualificação dos professores e na redução da sua função a meros executores de práticas pedagógicas pré-formatadas. Aposta-se na avaliação da sua capacidade para cumprir orientações e obter resultados quantitativos definidos pela tutela.
Exercer a profissão como educador e intelectual, com poder de participação e decisão, ou como servente, é uma escolha que todos temos de fazer.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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