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Escola pública, gerencialismo e accountability

UMA DAS ALTERAÇÕES QUE TEM VINDO A SER CRESCENTEMENTE DISCUTIDA É A TENTATIVA DE TRANSPLANTAR PARA A ESCOLA PÚBLICA FORMAS DE GESTÃO DE «TIPO EMPRESARIAL».

Em relação à administração dos sistemas educativos, uma das alterações que tem vindo a ser crescentemente discutida é a tentativa de transplantar para a escola pública formas de gestão de "tipo empresarial", isto é, formas de gestão mais adequadas a organizações industriais ou de serviços, as quais funcionam em economia de mercado e visam o lucro. Esta tendência, gerencialista ou managerialista, que adquire certas especificidades quando adoptada em instituições e serviços do Estado, tem sido designada de nova gestão pública.
No caso das escolas, a expressão ainda ténue desta nova gestão pública ? que se espera venha a ser cada vez mais nítida entre nós, como, aliás, já está a acontecer em alguns hospitais públicos ?, revela-se, por exemplo, na neo-taylorização do trabalho docente, ou seja, na separação crescente entre os que na escola "concebem" (que gerem ou decidem) e os que na escola "executam" (que são geridos e não têm poder de decisão). No caso dos professores, isso significa a sua redução a meros técnicos de transmissão e recontextualização de saberes ? mas saberes que outros produzem e que eles apenas devem (eficientemente) reproduzir. Estes saberes, de natureza predominantemente cognitiva e instrumental, devem ainda ser mensuráveis através de instrumentos assépticos, isto é, válidos, fidedignos e politicamente neutros.
Neste contexto, o gestor ou director escolar (preferencialmente como órgão unipessoal de cariz tecnocrático) assume uma nova centralidade organizacional, porque é ele (e não os órgãos colegiais) que deve prestar contas pelos resultados educacionais conseguidos, transformando-se no principal responsável pela efectiva concretização de metas e objectivos, quase sempre central e hierarquicamente definidos. Neste sentido, esta concepção de gestão introduz uma nova nuance  na configuração das relações de poder e autoridade nos sistemas educativos. Trata-se de uma autoridade cuja legitimidade advém agora da revalorização neoliberal do ?direito a gerir? ? direito este, por sua vez, apresentado como altamente convergente com a ideia neoconservadora que vê a gestão como uma espécie de ?tecnologia moral? ao serviço de uma nova ordem social, política e económica.
Apesar de haver diferentes modelos de prestação de contas e de responsabilização em educação (accountability), o modelo administrativo-burocrático e o modelo baseado na lógica de mercado são os mais congruentes com esta (nova) concepção de gestão e de gestor. Assim, tanto no modelo de responsabilização baseado na lógica do mercado, quanto no modelo que se apoia no controlo administrativo-burocrático, as formas de avaliação privilegiadas são sobretudo formas de avaliação que facilitam a comparação e o controlo de resultados, embora no primeiro modelo se exija sempre a sua divulgação pública e no outro essa prestação de contas se faça sem publicitação e directamente às hierarquias de topo da administração.
Em qualquer dos casos, sejam ou não publicamente divulgadas e publicitadas as informações sobre os resultados obtidos pelas escolas, a avaliação dos órgãos de gestão é sempre realizada, directa ou indirectamente, na base destes mesmos resultados, porque, quer o mercado (ou os designados clientes da educação escolar), quer as entidades mantenedoras quando se tratar de estabelecimentos privados, quer o Estado quando se tratar de escolas públicas, farão sempre recair sobre os gestores ou directores a justificação e a responsabilização mais imediatas desses mesmos resultados educacionais. Assim, os directores ou gestores escolares tenderão a criar mecanismos de controlo organizacional mais severos e formas de gestão supostamente mais eficientes e eficazes para garantir as condições necessárias à obtenção de bons resultados académicos e educacionais. É também por isso que a ideologia organizativa designada por gestão da qualidade total (também nascida nas empresas lucrativas e agora transposta para as organizações educativas e de saúde) pode transformar a escola num novo panóptico, incrementando os mecanismos de controlo e "vigilância" sobre os seus actores educativos.
Numa época de predomínio do individualismo possessivo e de pragmatismo do mercado, a adopção de modelos de gestão privada na escola pública pode transformar-se numa estratégia de destruição dos valores do bem comum no campo educacional, levando assim ao aumento das desigualdades e exclusões sociais.
Os valores do domínio público visam atender necessidades, preocupações e propósitos colectivos da sociedade. Neste sentido, a gestão de uma escola pública é também uma gestão de processos políticos, relacionais, pedagógicos, afectivos, éticos e sociais, implicando o reconhecimento de que o próprio contexto escolar é atravessado por conflitos, desigualdades, diversas "visões do mundo" e confronto de diferentes racionalidades, não sendo, por isso, a gestão uma questão de simples competência técnica ou instrumental. No entanto, a julgar pelo discurso oficial produzido pelos responsáveis do actual Ministério da Educação, o próximo modelo de administração das escolas talvez venha a incorrer em muitos dos problemas que aqui, sumariamente, acabei de enunciar.


  
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Edição:

N.º 126
Ano 12, Agosto/Setembro 2003

Autoria:

Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho
Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho

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