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Foi Natal

COLOQUIE-OS PERANTE A QUESTÃO COM QUE A RITA ME TINHA CONFRONTADO, SEM SABER QUE JÁ HAVIA UMA DECISÃO TOMADA E UM AUTO DE NATAL EM ANDAMENTO COM A CUMPLICIDADE DOS ANIMADORES DO ATL.

O sol enganava o frio daquela manhã outonal. Via-os no recreio, felizes e libertos.
Porque é que este ano não temos festa de Natal ?
Quem te disse isso ?
Como ainda não falámos de nada...
Novembro estava quase no fim. Aproveitei a oportunidade e coloquei-os perante a questão com que a Rita me tinha confrontado, sem saber que já havia uma decisão tomada e um auto de Natal em andamento com a cumplicidade dos animadores do ATL.
E quando é que esse trabalho pode ser visto ?
Mostraram-no na hora que semanalmente dedicávamos às actividades na ?Oficina de Teatro?. Era um texto que nenhuma catequista mais ortodoxa  teria aprovado. Jesus nascia em pleno palco descaindo da barriga de Nossa Senhora. Os reis magos chegavam de mota. Mantinham-se, apenas, os pastores, tão calados quanto as suas ovelhas, mais o ouro, o incenso e a mirra originais. O burro e a vaca, esses tinham sido dispensados. Só faltava saber quais os figurinos que aquela turba ia utilizar, problema que nesse momento os preocupava menos que a minha opinião pelo trabalho que tinham acabado de apresentar.
Quis saber pormenores e descobri que a Rita e a Joana tinham sido as dramaturgas de serviço. As marcações contaram com a ajuda do professor de Informática, enquanto os cenários andavam a ser feitos com a ajuda da Paulina, a responsável por tudo o que tivesse a ver com projectos relacionados com Expressão Plástica. Queriam fazer-me uma surpresa e tinham-no conseguido. Só faltava marcar a data da festa e saber o que é que eu pensava do trabalho que tinham realizado. Falei-lhes da mudez dos pastores e da confusão de ver chegar à gruta de Belém aqueles três reis montados em ?Kawasakis? a oferecer presentes tão antiquados. O silêncio raro que se seguiu era, afinal, uma pergunta à qual não fugi.
Porque é que os pastores não tinham nada para dizer ? Será que o menino Jesus não gostaria de receber as prendas que vocês, hoje, também desejavam ter ?
Na semana seguinte apareceram os pastores a elogiar a beleza do menino e pouco mais. Os presentes dos reis, esses, passaram a ser uma bola de futebol, um gravador e um cavalo de pau. Porquê ? Nunca o soube, mas também não perguntei. Sugeri, apenas, que a cena da entrega dos presentes poderia ter um pouco mais de animação, sem imaginar que os pastores e as ovelhas apareceriam, no palco, a dançar ?break dance?, no momento em que Baltasar demonstrava a excelência do som do ?Sanyo? que acabara de oferecer. Uma proposta cuja ousadia contrastava, estranhamente, com a timidez daquele que era o seu autor confesso. Uma revelação, mais uma, por entre todas as revelações que aqueles dias me foram proporcionando. Nunca saberei o que é que aqueles miúdos aprenderam com a realização dessa festa de Natal ou se, porventura, beneficiaram alguma coisa com aquela leitura tão iconoclasta quanto humana do nascimento de Cristo. Vi-os cooperar, comunicar, tomar decisões e assumir responsabilidades, construindo um projecto à sua medida. E se aquele não era o auto de Natal mais fidedigno que a leitura da Bíblia permitia construir, era certamente um desses momentos raros e bons que, por vezes, temos o direito de viver.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 126
Ano 12, Agosto/Setembro 2003

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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