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"Hoje, mais do que nunca, os professores são educadores para o futuro"

Antonio Caride Gomez
em entrevista à PÁGINA

O que é a ética profissional e, mais particularmente, a ética profissional docente? Em que limites se situa? Onde acaba o cidadão e começa o professor? Estas são algumas das questões colocadas a Antonio Caride Gomez, professor catedrático de Pedagogia Social no Departamento de Teoria e História da Educação da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Santiago de Compostela e colaborador regular de A PÁGINA da educação na rubrica ÉTICA e Profissão Docente - que partilha com Isabel Baptista e Adalberto Dias de Carvalho. Para além da actividade docente, Caride Gomez dirige a revista Hadase, daquela faculdade, e integra o conselho editorial e científico de diversas revistas especializadas. Preside, desde Setembro de 2002, à Sociedade Ibérica de Pedagogia Social.

A ética, seja ela de índole pessoal ou profissional, é ainda um conceito pouco explorado. A que nos referimos quando falamos de ética?

Quando nos referimos à ética e aos significados que ela pode encerrar na nossa vida quotidiana estamos a situar-nos em algo que apela directamente para compromissos e responsabilidades situados, essencialmente, na esfera pública, e principalmente no que se refere ao desempenho profissional. A ética é uma referência no mundo dos direitos mas também no mundo dos deveres profissionais na medida em que através dela definimos ideais, valores, modos de estar e, essencialmente, modos de ser. Ou seja, a ética deverá ser um vector essencial na identidade dos profissionais. É impensável que um profissional se defina apenas como um técnico e se esqueça do porquê do seu saber fazer, especialmente quando trabalha com outros, com a sociedade e para a sociedade.

Em particular tratando-se de um trabalhador social, como são os professores...

Sim. Especialmente na profissão docente afirma-se e reivindica-se a condição ética na medida em que estamos a falar de profissionais que trabalham na sociedade e que devem trabalhar, necessariamente, em prol dela. De tal modo que a pergunta permanente sobre o porquê de educarmos, porque actuamos e intervimos na sociedade e para que o fazemos, se torna uma questão chave. E na medida em que apela a modelos de sociedade, a valores e a  ideais, mais inevitável se torna essa consciência ética.

Acha que esse questionamento ético está presente na classe docente?

Não na medida do possível. E, no fundo, essa é apenas uma expressão de outros défices que temos enquanto pessoas e cidadãos.
Não sei qual é a situação em outros países, mas em Espanha a formação inicial dos professores orienta-se, na sua essência, por uma dimensão deontológica, não por uma cultura ética. Mas a formação dos professores deveria ser uma tarefa colectiva, uma oportunidade para debater colectivamente, entre outras questões que atravessam a profissão, as questões de natureza ética. Há um défice generalizado na formação dos professores sobre esta matéria. E isso reflecte-se no quotidiano das escolas, onde as referências à ética nos currículos ou nas programações da aula são mínimas, quando não mesmo nulas.
Daí insistir muito na distinção entre o simples exercício da profissão e o assumir da profissão. É através da ética - também de outras formas de construir a identidade dos professores, mas principalmente através dela -, que nos questionamos sobre o significado de ser hoje professor, nesta sociedade e em relação à sociedade que queremos construir. E olhando para a sociedade que vivemos, essa referência deveria transformar-se numa inquietude permanente.
 
Não acha, por exemplo, que a dimensão política da educação na formação de professores é esquecida?

Sem dúvida. Estou perfeitamente convencido - partilhando, aliás, posições de autores e educadores como Paulo Freire -, de que a educação tem uma vertebração e uma natureza políticas. E, sendo assim, não tenho dúvida de que os professores devem ter consciência, na sua formação e na sua prática, dos significados que levam a dar à educação este sentido e esta dimensão.
Até porque há valores que têm vindo a ser introduzidos nos últimos anos no sistema educativo, que nos falam de democracia, de paz, de solidariedade, de convivência, de preservação do meio ambiente, de igualdade do género, que não se limitam a uma componente axiológica, têm também uma componente política indiscutível. E não podemos esquecer que a afirmação, subscrita praticamente por todos os cidadãos e mesmo por aqueles que têm responsabilidades políticas, na direita ou na esquerda, de que a educação deve estar orientada para a mudança e para transformação social, tem implicitamente declarada essa natureza e esse sentido político que se dá à educação.
Porém, não basta dizer que a educação deve ajudar a mudar a sociedade, devemos também saber com que orientação se deve produzir essa mudança. Devemos ter ideias, devemos ter projectos, devemos desenvolver iniciativas que nos permitam chegar a ela. E devemos procurar que isso se faça no contexto do diálogo e da participação, que, pelo menos até agora, tem sido apanágio da nossa sociedade. Estamos ainda longe daquilo que declaramos, seja na educação ou em relação aos direitos sociais e humanos, e devemos lutar por isso. E uma parte fundamental dessa construção tem de ser dada, obviamente, através da educação que proporcionamos, da educação que recebemos, de como se educa, de como nos educamos.

Dimensões da ética

O sentido ético pode ter diferentes leituras porque, como é natural, as pessoas têm valores pessoais, religiosos e políticos diferentes. Nesta medida, será possível haver um conceito ético profissional coerente?

A ética, como tantas outras coisas na vida, não é algo que nos é dado, é algo que se constrói. No contexto daquilo que podemos entender como a ética social, a ética pública e das profissões, estamos a falar de algo que deverá contemplar o sentido plural dos valores, da diversidade do pensamento e também da acção. Em redor desta ética deverá, na minha opinião, existir um determinado número de princípios básicos, consensuais, muitos deles, aliás, por nós reafirmados nos últimos anos em relação à educação: do que significa construir uma sociedade democrática, solidária, justa, igualitária. Apesar destes valores estarem relativamente definidos, a ética situa-se neles de um modo não unívoco - eu diria mesmo que essa não deve ser a pretensão fundamental -, mas de um modo plural. Isto significa que há que dialogar em redor da ética, há que aflorar contradições e conflitos e torná-la numa referência.

Apesar de esses valores serem relativamente consensuais, um professor de um país africano, cuja principal preocupação será a de garantir a alfabetização dos seus alunos, terá preocupações éticas muito diferentes do que um colega europeu ou americano. Nesse sentido, a profissão docente abarca um grande número de contextos e de realidades que fazem com essa aproximação ética possa ser muito diferente, não concorda?

Certamente, mas essa diversidade é, no fundo, uma expressão da necessidade de contextualizar o desempenho da profissão nas realidades onde estamos inseridos. Porque não podemos estar situados nessas realidades como se estivéssemos nelas po" ?emprésti"o?, estamos nas realidades com os compromissos e as responsabilidades que elas exigem, com as suas próprias necessidades, prioridades, políticas e diversidade interna. Nesse sentido, as concepções, as representações e mesmo as respostas que podem ser dadas através de um posicionamento ético são diversas.
Por outro lado, também é certo que deverá existir uma identidade comum, algo que nos proporcione uma base para construirmos uma ideia da educação que queremos, da sociedade que pretendemos construir, dos valores em função dos quais educamos, ainda que as diferentes realidades nos obriguem a dar respostas diferentes, até porque a prática pedagógica só pode ser substanciada situando-se numa visão das diferenças, de cada pessoa, mas também de cada grupo, de cada aula, com os seus alunos, com o seu próprio clima e identidade, em cada escola, ou conjunto de escolas de uma cidade ou de uma aldeia.
Penso que hoje, mais do que nunca, sabemos quais os referentes que devemos ter em comum e estamos conscientes de que só podemos construir uma verdadeira educação a partir da realidade em que nos inserimos. O primeiro compromisso e a primeira responsabilidade dos professores é para com quem está diante dele, o aluno, o grupo de alunos, com os quais desenvolve quotidianamente a sua prática educativa. Para isso é necessário também recuperar a imagem da educação como uma prática quotidiana - com todas as exigências inerentes a essa prática -, mesmo em função do que é emergente, não só daquilo que antecipamos. Mais do que nunca isso obriga os professores a estar atento às realidades que o circundam, às notícias, às inquietações que surgem nele próprio e nos alunos.

Perante essas inquietações, considera que um professor deve manter uma posição de neutralidade ou assumir as suas posições e partilhá-las com os alunos?

Quando nos situamos nessa natureza política da educação a que antes aludimos, estamos a afirmar que não há neutralidade possível, o que não significa que essa falta de neutralidade no diagnóstico se converta numa tomada de posição ideológica. Tornarmos explícitas as nossas tomadas de posição, manifestando os nossos compromissos e valores diante de problemas que não nos deixam indiferentes, são questões que, explícita ou implicitamente, nos dizem que a educação não é neutral.
O professor não deverá é aproveitar as vantagens que lhe dão a sua condição de liderança formal para que a sua tomada de posição não se converta na dos seus alunos. Quando nos referimos à necessidade de os alunos construírem a sua identidade e a sua autonomia estamos apelar à sua liberdade, à construção das suas próprias ideias e opiniões. E um dos processos para atingir essa autonomia é, sem dúvida alguma, o diálogo. Se o professor dá a palavra aos seus alunos, aquelas pessoas com as quais constrói as suas práticas pedagógicas, seja na educação pré-escolar, no ensino básico ou na universidade, ele está a confrontar os seus valores e as suas ideias com os outros, que também não são neutrais.

Onde termina o cidadão e começa o professor?

Por vezes surgem questões que nos dividem em relação aos nossos princípios. Como se gerem esses conflitos interiores?

Para responder a isso talvez tenhamos de partir de uma ideia chave - que, na minha opinião, servirá pelo menos como ponto de partida, não sei se como ponto de chegad- ? que é entender que a educação é uma prática social complexa, que não se resume exclusivamente à prática pedagógica, instrutiva, curricular, porque tem significados que nos situam no âmbito da política, das ideologias, das crenças, das mentalidades, e aí sabemos, e julgamos como positivo, que existe diversidade, pluralidade e mesmo conflit- ? o que, por vezes, significa confrontação de colectivos e de pessoas.
Neste contexto, é natural que também surjam conflitos no plano pessoal. O importante, e considero esta uma questão fundamental quando nos situamos no plano da ética, é procurar ser coerente. A busca da coerência é uma tarefa difícil, que nos desafia permanentemente, que nos confronta com o que dizemos e o que fazemos, o que pensamos e como actuamos. E mesmo sentindo essa coerência por vezes torna-se necessário interpretá-la, e hoje estamos perante situações que nos obrigam a tomar uma posição perante decisões políticas e realidades que muitas vezes desafiam a nossa consciência.

Existe alguma fronteira definível entre os valores pessoais e os valores e as obrigações profissionais? Dir-se-ia que há uma fronteira ténue entre as duas dimensõ...s?

Sim, as fronteiras são pouco distintas. Eu diria mesmo que será difícil utilizar aqui a metáfora da fronteira como descrição entre o que significa transitar entre a própria vida e a vida profissional, na medida em que as interiorizações que fazemos relativamente à profissão formam parte daquilo que somos, como professores, como pais, como cidadãos e como membros de uma sociedade. Apesar de os professores verem hoje o seu trabalho dificultado, essa dificuldade engrandece-os na medida em que educam para a cidadania sem que eles próprios deixem de ser cidadãos.
Nessa perspectiva, considero que existe uma espécie de trânsito, de mediação permanente entre aquilo que somos e aquilo que fazemos como professores. Por isso é tão necessário insistir na imagem do professor não só como um profissional que transmite conhecimentos, que resolve competentemente o seu trabalho - mesmo como gestor, por vezes -, mas também como alguém que educa através das suas atitudes. É aí que devem assentar as expressões máximas dos valores e da ética.

Um professor tem hoje responsabilidades diferentes de há vinte ou trinta anos a...rás?

Sim, sem dúvida, porque hoje, mais do que nunca, parecemos esquecer que os professores são educadores para o futuro. Ainda que o futuro seja apenas uma imagem, uma incerteza, educamos no presente através daquilo que nos foi legado do passado, mas essencialmente estamos a construir o futuro, através dos nossos alunos, dos nossos projectos, que em si mesmos transmitem uma ideia de futuro. Na sociedade que vivemos esse futuro é cada vez mais incerto, mais desafiante, e os professores têm a obrigação de situar-se nessa imprevisibilidade. E temos essa obrigação porque estamos a educar os cidadãos desse futuro. Tudo isto implica necessariamente que os professores de hoje se sintam diferentes dos professores do passado.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
José Antonio Caride Gómez
Professor Catedrático de Pedagogía Social, Univ. de Santiago de Compostela
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
José Antonio Caride Gómez
Professor Catedrático de Pedagogía Social, Univ. de Santiago de Compostela

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