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Filosofia de vida oriental

Escola de Artes Marciais Chinesas SHE-SI (Associação Desportiva)

O Oriente tem chegado ao Ocidente sob as mais diversas formas. Haverá ainda alguém que nunca tenha entrado numa loja comercial chinesa? Ou não saiba qual o paladar do crepe chinês quando banhado em molho de soja? O livro ?Mulheres da China?, da escritora Xinran, diz-lhe alguma coisa? Do comércio à gastronomia, passando pela literatura e a medicina até às artes marciais, é inegável a presença chinesa na cultura ocidental. No Porto, há uma associação desportiva com o estatuto de instituição de utilidade pública pelo papel na divulgação da cultura chinesa. Este mês a associação celebra o seu 17º aniversário com a organização do ?1º Kung Fu Fighting Contest?, que decorre a 21 de Junho, no Pavilhão do CDUP. A PÁGINA foi visitar a Escola de Artes Marciais Chinesas SHE-SI e entrou num mundo simbólico desconhecido onde tudo se relaciona com tudo. Façam, também, o favor de entrar.

A entrada está guardada por leões. Há uma cor amarelo trigo que pinta as paredes. Não está lá por acaso. O trigo significa o alimento. O mestre Paulo Araújo, director e fundador da Escola de Artes Marciais Chinesas SHE- SI, explica que os caracteres chineses para a palavra energia são compostos pela junção de duas palavras: cereal e vapor. Daí que a simbologia do amarelo trigo seja a energia. A componente que o aluno procura quando decide entrar para a escola. Energia e alimento. Espiritual. 
Percorrendo o corredor da entrada, também amarelo trigo, chega-se a um outro espaço: a Sala da Arte. A cor muda. O amarelo torna-se mais incandescente. Significa o nascer do sol. Era este o amarelo usado pelo Imperador. Quer no vestuário quer nos ornamentos que o rodeavam. ?A realização de uma obra de arte é um momento único, incandescente?, comenta Paulo Araújo.
Os corredores da escola fazem um serpentear que representa o caminho do Dragão. Ao fazer este reparo, mestre Paulo elucida: ?Deitamos paredes abaixo propositadamente para criar esta dinâmica.? As escadas fazem parte desse zig-zag. Ao desce-las encontramos um outro espaço. Para trás, numa pequena sala de espera, ficou o altar a Kwan Kun, o Deus da Guerra. Como oferendas, alunos e professores deixam as taças e medalhas que vão ganhando. ?Só durante algum tempo?, explica o mestre. ?Depois vão para a arrecadação?, sorri.
Nas paredes do novo espaço coexistem os dois amarelos. Mas surge um elemento novo. Uma lua cheia vermelha cobre as portas dos balneários feminino e masculino. ?Quando o aluno chega à escola tem um sonho, um ideal, chegar ao topo?, diz Paulo. A lua simboliza o sonho. Abrem-se ligeiramente as portas dos balneários para mostrar a sua cor. Verde, o feminino porque significa a terra onde nascem as folhas, o Yin. Azul, o masculino, a cor do céu, da energia, o Yang.
Seguindo o caminho do Dragão deparamos com a Sala da Energia. O tom azul lilás convida à reflexão, invoca o metafísico. Uns metros adiante um vermelho fogo retira a sensação de serenidade suscitado pela sala anterior. É a cor do poder. ?Lembra aos alunos que o poder físico é limitado e o mental ilimitado?, observa Paulo. Estamos na Sala da Guerra. Recuar não é saída. Ir em frente. Sim. Entramos no Jardim da Harmonia.
?Já se ouvem os pássaros!?, diz Paulo Araújo sorridente. No chão em calçada portuguesa o símbolo da harmonia. De um lado e do outro canas de bambu agitam-se ao ritmo do vento. Ao fundo um pequeno lago em forma de serpente. Tem oito peixes vermelhos e um preto. Na academia todos os cantos são simbólicos. Paulo explica: ?O oito é um número que está associado à fama e à riqueza; o um é o número indivisível, juntos fazem nove, o número do Dragão, do Imperador. ? Perto do lago, uma cegonha símbolo da longevidade.
De regresso à Sala da Guerra, o mestre mostra a bandeira da escola. ?Está em repouso, mas não está deitada!? Se estivesse deitada no chão era mau sinal, a bandeira derrubada significa a derrota. Por isso está entrelaçada num tronco de madeira [para luta]. ?Deitada só se estivesse desarmada e arrumada?, acrescenta Paulo. Estampada na bandeira a figura do Tigre e do Dragão. Representam a coragem e o espírito. O corpo do Dragão, um dos mais emblemáticos símbolos chineses, é o resultado da junção de partes de cinco animais: cabeça do cavalo, as escamas da carpa [símbolo de prosperidade], os chifres do veado e as garras do tigre. Mas chega de visita. E o Kung Fu?

Ética marcial

Na sala onde fica o altar ao Deus da Guerra, está a passar um vídeo de competição de Formas. As Formas são movimentos de luta simulada, coreografias que mostram o combate de um indivíduo com mais do que um adversário imaginário. ?É uma luta contra nós próprios?, explica Paulo Araújo.
Algumas crianças que aguardam a sua aula de Kung Fu brincam no chão perto do sofá onde Nuno, aluno e professor de Kung Fu, se senta para assistir ao vídeo. A atenção não é perturbada pela agitação das crianças. A curiosidade da jornalista leva Nuno a avançar com algumas explicações sobre os movimentos que vão aparecendo na televisão. As Formas dividem-se em duas categorias: as do Norte e as do Sul da China. ?As do Norte são mais acrobáticas, mais ritmadas (no ecrã o atleta salta para a frente e para trás com destreza); as do Sul são mais objectivas, mais viris, há maior emprego da força?, comenta Nuno sem pestanejar. Depois existem as Formas com facas. No ecrã um atleta movimenta as mãos que apenas parecem agitar lenços vermelhos. ?Servem para iludir o adversário. Enquanto ele olha para os lenços não vê a faca?, observa Nuno. ?Mas quem lhe pode explicar melhor isto é o mestre!?
Qualquer que seja a arte marcial ou a idade do aluno ou professor, quem frequenta a SHE-SI tem de pautar os seus comportamentos pelo código de ética marcial. E uma das regras é o respeito ao mestre, encarado como o pai, e ao irmão mais velho, o aluno mais antigo. Os ensinamentos são transmitidos em cadeia descendente, do mais velho para o mais novo. No entanto, explica Paulo Araújo, ?há uma preocupação recíproca entre alunos mais velhos e mais novos que faz com que haja um objectivo comum: dotar o mais rapidamente possível todos os irmãos de conhecimento.? As dúvidas são elucidadas no sentido contrário, passando de elo em elo ?até chegar ao último, neste caso ao primeiro, o mestre.?
Não ser belicoso e usar a arte da luta (Kung Fu) só em legítima defesa, é outra das regras do código. ?O aluno deve evitar o conflito, mas não fugir dele no caso de ter de o enfrentar.? E por conflito não se entende unicamente a luta. Mas as divergências do dia-a-dia. Aliado a esta regra está a recusa a qualquer postura de arrogância ou prepotência. ?Mesmo que um aluno seja tecnicamente mais dotado do que o outro tem de ter o cuidado de se posicionar num patamar idêntico, não há ninguém que esteja acima de ninguém?, adverte mestre Paulo. E todos devem zelar pela sua casa, o SHE - SI.
Honrar e defender a associação, é a regra que une todos os membros num objectivo comum. ?Nós nunca destacamos um feito individual!?, assegura o mestre. Apesar dos troféus e dos títulos arrecadados pelos alunos, campeões do mundo em Kung Fu, em Formas, campeões europeus em combate (a lista seria longa), ?quando um deles vence, diz nós vencemos!? Porquê? ?Todos sabemos que há um esforço individual do atleta, mas para que ele pudesse treinar a luta outros treinaram com ele, para que ele não tivesse de ir correr sozinho, apresentaram-se dois ou três alunos para ir correr com ele!? A resposta de Paulo Araújo reflecte o espírito de que ?só a união faz a força?.

Uma filosofia de vida chinesa

Manuela aguarda pelo filho David, de 7 anos, que está a ter aula de Kung Fu. Há dois anos e meio que o filho frequenta a escola de artes marciais. ?É uma boa forma de exercitar os músculos e a mente.? Além disso Manuela reconhece que a concentração exigida pela prática do Kung Fu tem reflexos ao nível escolar. Depois há a questão da segurança: ?Pelo menos, teoricamente, sei que ele terá os meios para se defender numa situação de risco.? E por último há ainda? Manuela hesita? ?a filosofia, ou como lhe quiser chamar!?
Talvez por isso Ana Abreu, advogada, se sinta mais disciplinada desde que começou a praticar Tai Chi - uma arte marcial mais suave que o Kung Fu que trabalha a energia interna. ?A execução dos movimentos, a postura do corpo e o modo como pensamos a respiração requerem rigor, concentração e paciência, qualidades que depois acabamos por adoptar na nossa vida pessoal e profissional?, reflecte Ana. O fascínio que a advogada sente pela cultura chinesa deve-se à ?honestidade? que a caracteriza. ?Na vida temos tendência para desculpar os nossos erros com os dos outros, aqui [na escola de artes marciais] aprendi a ser mais honesta, a admitir os meus erros e a enfrentá-los!?
Sobre filosofia e o saber chinês, Alexandra Dias, professora de Tai Chi, falaria a tarde inteira, se pudesse. A boa disposição para a conversa é potenciada pelo amarelo da sala em que nos encontrámos pois, observa Alexandra, a cor promove a comunicação! Na China tudo ? arte, medicina, cultura ? é explicado através da relação íntima do Homem com a Terra. ?O que faz com que os chineses minimizem ao máximo os conflitos do Homem com o meio ambiente?, explica Alexandra. Esta preocupação encontra eco em coisas tão simples como a organização das divisões de uma casa, ou a escolha dos materiais e das cores a serem utilizadas. ?O objectivo é o equilíbrio!?, sintetiza. No ocidente, pelo contrário, a relação com o meio ambiente é frágil. Por isso Alexandra acredita que o que atrai cada vez mais pessoas à cultura chinesa é ?a redescoberta de que são um produto da natureza?.
Paulo Araújo encontra outra razão para esta atracção. ?A sociedade ocidental perdeu conceitos fundamentais como o de família. Em que o pai era o patriarca e era respeitado como tal, em que toda a gente jantava sobre a mesma mesa, em que a mãe tinha o lugar de matriarca e a preocupação de não deixar a família se desmembrar e em que havia o respeito ao mais velho, ao avô!? Esta perda e o vazio que acarreta conduz a uma procura. De quê? Do tal trigo. De alimento, energia. Uma procura espiritual. E é esse o motivo porque o ensino das artes marciais, para mestre Paulo não se esgota na técnica. É preciso transmitir algo mais: ?Uma filosofia de vida em que as pessoas tenham uma atitude mais pensante e não tão imediata na reacção.?

Pequeno breviário das Artes Marciais

Kung Fu

A arte da luta, o seu objectivo é dotar quem o pratica da capacidade de se defender, mas também de uma personalidade diferente da comum.

Sanda

Resulta de uma necessidade que o Kung Fu teve de separar os alunos que queriam aprender as técnicas de luta sem aprender as Formas: coreografias da luta. É exclusivamente uma arte de combate de competição.

Formas

São movimentos de luta simulada, coreografias que simbolizam a luta de um indivíduo contra mais do que um adversário imaginário.

Tai - Chi

Consiste num conjunto de movimentos que visam a busca interior de energia de modo a fazê-la fluir dentro do organismo sem a desperdiçar. É uma arte de coreografia mais do que de luta, no entanto, as técnicas do Tai-Chi podem ser aplicadas na defesa pessoal. 

Qi Gong

São exercícios físicos e respiratórios que visam transportar a energia que existe no nosso corpo para determinadas áreas onde possam existir desequilíbrios com a finalidade de restabelecer o equilíbrio.

Academia de Kungfu

Também designada por Escola de Artes Marciais Chinesas SHE-SI.
Tem praticantes de todas as idades e fica na Rua de Nossa Senhora de Fátima, nº 443. 4050-428 PORTO. Telefone 226095706  e.mail shesi@netc.pt


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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