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O Bazar do Kuwait e a Reconfiguração do Poder

ORGANIZAÇÃO SOCIAL

RETOMANDO A IDEIA DE «A DIFERENÇA SOMOS NÓS» E A DO «BAZAR DO KUWAIT», COMO ESTRUTURADORAS DE UMA NOVA CONCEPÇÃO DAS SOCIEDADES, E DAS SOCIABILIDADES, ACTUAIS, PRETENDEMOS AQUI ESBOÇAR ALGUNS PONTOS PARA EXPLICAR MELHOR O QUE ESTÁ EVENTUALMENTE EM CAUSA.

Numa das nossas últimas contribuições para este espaço, falámos dos diferentes modelos que estruturaram, e estruturam, as relações com as diferenças nas sociedades ocidentais. O último modelo aí apresentado, o modelo relacional, baseia-se numa perspectiva em que a assunção da ?nossa? diferença redefine a própria relação.  Isto é, já ninguém ocupa a posição privilegiada, em termos sociológicos e epistemológicos, de determinar quem é o diferente. Por isso, designámos esta perspectiva através da expressão ?a diferença somos nós?.
Num debate bastante conhecido entre o filósofo Richard Rorty e o antropólogo Clifford Geertz sobre a organização das sociedades modernas ocidentais, o segundo propõe a metáfora do ?bazar do Kuwait? para dar conta da simultânea tendência para a fragmentação e a agregação dessa sociedades. Geertz fala concretamente sobre como numa época de globalização as comunidades locais se assemelham crescentemente a uma enorme colagem, isto é, em cada uma das suas localidades, o mundo parece cada vez mais ?um bazar do Kuwait do que um exclusivo clube inglês?.  Este último representa a incomensurabilidade das diferenças locais/culturais: a ?portuguesidade? dos portugueses, a ?englishness? dos ingleses, o carácter árabe dos próprios árabes, etc.
Retomando a ideia de ?a diferença somos nós? e a do ?bazar do Kuwait?, como estruturadoras de uma nova concepção das sociedades, e das sociabilidades, actuais, pretendemos aqui esboçar alguns pontos para explicar melhor o que está eventualmente em causa.  Em primeiro lugar, queremos defender:

  1. que o bazar é o espaço público (político, social, cultural...) regulado e susceptível de regulação;
  2. o espaço público possuiu, e possui, várias configurações nos diferentes horizontes do globo, mas a mais dominante é aquela que resulta da sua estruturação pelo estado;
  3. o estado moderno tem sido um potencial difusor de (in)justiça;
  4. se reconfigurado, o estado pode ser um importante agente de distribuição de justiça social e de difusão do reconhecimento da diferença, assim como um importante instrumento de implementação da justiça distributiva;
  5. a soberania que as ?diferenças? reclamam do estado não corresponde à  dissolução deste enquanto agente de justiça (sobretudo distributiva), mas diz respeito à legitimidade das diferenças regularem as suas próprias vidas.  ?Eu pago impostos (dever), mas  quero educar (direito) os meus filhos como bem acho que eles devem ser educados?;
  6. o bazar, o espaço público regulado, é um espaço em que a justiça redistributiva e a justiça ligada ao reconhecimento das diferenças constituem uma geometria variável: a variação depende do poder e do conflito entre as diferenças;
  7. esta geometria variável é ao mesmo tempo consensual e arbitrária, portanto frágil;
  8. esta fragilidade e instabilidade não são uma fase a ultrapassar, mas um estado permanente: a democracia já não é um ?estádio?, mas um fim em si mesmo (ou sem fim).

Em segundo lugar, o que está em causa, e tendo em conta esta definição política do bazar, é o facto da assunção de ?a diferença somos nós? colocar a questão do poder, enfatizando que as diferenças se afirmam como um ?campo de batalha ideológico? (Wallerstein), isto é, dialectizando as questões de discriminação, racismo ou exclusão com aquelas derivadas da desigualdade na distribuição da riqueza. Desligar os elementos da tríade ?poder cultural-afirmação da diferença-igualdade económica? é cair nos engodos das estratégias modernas fundadas no princípio segundo o qual a justiça social deriva (mais ou menos directamente) da justiça económica. Sabemos, hoje, que não é assim: a luta pela justiça social despoletada pela afirmação das diferenças, nos movimentos sociais actuais, não surge separada das reivindicações de justiça económica e vice-versa. Mais: esta surge frequentemente reconfigurada por aquela.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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