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Entrevista com Xesus Jares, professor da Universidade da Coruña e coordenador do colectivo "Educadores para a Paz"

"A escola não só deverá ensinar o respeito pelas instituições democráticas mas ela própria ser um exemplo prático e quotidiano de organização democrática."

Xesús Jares é professor da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade da Corunha, na Galiza, desde 1990. Os dez anos anteriores trabalhou como professor do ensino básico e secundário. É fundador e coordenador do colectivo "Educadores/as pola Paz-Nova Escola Galega" desde a sua fundação em 1983. Nesse âmbito, coordena o Programa "Aprender a Conviver", no município de Vigo. É autor de numerosas publicações, e entre os seus livros tem dois traduzidos para português: "Educação para a paz - sua teoria e sua prática", Editorial Artmed, Porto Alegre (Brasil), 2002 e "Educação e conflito - Guia de educação para a convivência, Editorial ASA, Porto (Portugal), 2002.
Nesta entrevista falamos da importância da escola para a salvaguarda das instituições democráticas - numa altura em que o pensamento único parece ter adquirido um perigoso peso político -, da suposta neutralidade da escola e dos professores face aos últimos acontecimentos mundiais, e de um programa educativo, coordenado pelo próprio Xesus Jares no município de Vigo, que pretende favorecer a resolução de conflitos pela via pacífica, promovendo uma convivência democrática e solidária.


Numa altura em que a violência se sobrepõe ao uso da diplomacia - como ficou bem patente no caso da guerra do Iraque - movimentos como os "Educadores pola paz" fazem ainda mais sentido de existir. Como um dos seus  fundadores, como caracteriza a actual situação do movimento? Continua activo? Manifestou alguma tomada de posição pública sobre o conflito?

Um dos sectores sociais mais activos na resposta anti-belicista em Espanha é precisamente o dos professores e educadores, sem distinção do nível de ensino. As pessoas e os grupos envolvidos no movimento "Educadores Pola Paz" estão a ter um protagonismo muito activo na resposta cidadã em prol da paz e contra esta guerra ilegal, injusta e imoral. Uma prova deste activismo são as represálias que a comunidade educativa está a sofrer, fazendo-nos lembrar o tempo do franquismo. No caso da Galiza, o próprio presidente da Xunta de Galicia, o ex-ministro franquista Manuel Fraga Iribarne, e o seu Conselheiro de Educação, estão a acusar os professores de "violentar a consciência dos estudantes" e mesmo de "forçar" os estudantes a participar nas manifestações.
A Conselleria de Educación da Galiza chegou a enviar uma circular aos jardins de infância e aos estabelecimentos de ensino primário e secundário proibindo cartazes e actividades de contestação à guerra bem como à maré negra provocada pelo navio Prestige, reagindo de forma autoritária a esse activismo que está a passar pelas escolas.
Em relação à posição pública sobre o conflito, estamos a participar em diversas plataformas contra a guerra e, no contexto do programa educativo municipal "Aprender a Conviver", redigimos o "Manifesto pola Paz e Contra a Guerra", já assinado por cerca de cinquenta escolas de todos os níveis de ensino, também publicado na última edição do vosso jornal, ao qual esperamos que também adiram os estabelecimentos de ensino portugueses.
Não tenho dúvida que face à nova situação mundial, traduzida pelo unilateralismo ou imperialismo norte-americano, teremos de estreitar os laços e as relações entre as educadoras e os educadores, tanto a nível europeu como a nível mundial.

Parece que essa tendência de censura e de repressão - característica dos antigos regimes fascistas - está a voltar com alguma força à Europa, nomeadamente nos países governados por partidos de direita. Porque razão acha que isso está a acontecer?

Considero que há duas respostas possíveis para essa questão. Por um lado, uma situação de carácter conjuntural originada pelo jogo político e pela fractura social que se está a produzir entre governantes e governados; por outro, a "direitização" global que se está a produzir no mundo como consequência dos atentados terroristas do 11 de setembro nos Estados Unidos da América. Como já se tem referido, uma das principais vítimas dos atentados de Nova Iorque têm sido precisamente os direitos humanos e a restrição das liberdades individuais.
Em ambos os casos, o denominador comum é o falso dilema que se estabelece entre segurança e liberdade e a utilização perversa do medo entre a população para favorecer políticas conservadoras e de militarização da sociedade. Esse temor tem sido utilizado pela maioria dos dirigentes e ideólogos da política norte-americana e europeia conservadora em benefício de políticas armamentistas e belicistas. Tudo isto disfarçado de um patriotismo asfixiante de racionalidade e de compreensão.

Os estudantes são ensinados na escola a acreditar no respeito pelas instituições democráticas, mas quando organizações como a ONU são postas de lado na resolução de conflitos como o que opõe o Iraque aos Estados Unidos esse princípio pode correr o risco de cair no descrédito. Em que posição fica a escola num cenário como este?

A escola não só deverá ensinar o respeito pelas instituições democráticas mas ela própria ser um exemplo prático e quotidiano de organização democrática. A vida da escola, a cultura organizativa, as relações entre estudantes e entre estes e os professores e a comunidade educativa têm de ser baseados nos princípios democráticos e para os princípios democráticos. Nessa aprendizagem não poderá faltar a análise das posições contrárias, das contradições e dos conflitos que são inerentes à democracia. Não podemos separar a convivência democrática dos conflitos e mesmo das posições  anti-democráticas que convivem na sociedade.
Nesse sentido, a aposta democrática da educação deverá ser hoje capaz de sensibilizar os estudantes para a defesa das Nações Unidas e sua plena democratização, assim como das instituições e tribunais internacionais de justiça, questionando as posições da lei do mais forte e do unilateralismo, que está a inspirar a actual política norte-americana com o apoio do Reino Unido, da  Espanha e de Portugal, entre outros países. A escola deverá igualmente lutar contra a conversão da democracia em mera liberdade de consumo, aceitando as normas e valores impostos pelo mercado através de uma "engenharia da persuasão".

Como explicar esta alteração das relações de poder aos mais novos? Nesse contexto, qual tem sido a opinião dos seus alunos e, de uma forma mais geral, dos estudantes espanhóis?

Apesar de não ser uma tarefa fácil é, sem dúvida, necessária. Quando trabalhamos didacticamente o conflito, é importante partir das relações mais próximas, como a turma, e utilizar diferentes estratégias didáticas como são os estudos de caso, os jogos de papéis, dramatizações, textos literários, etc. Creio que é importante partir da experiência, real ou simulada, do próprio grupo-turma, analisando o que ali acontece e compará-la com a vida real. É o que chamamos de método "socio-afectivo", que temos utilizado nos últimos anos tanto no ensino primário como no secundário e na universidade.
Em  relação à resposta dos meus alunos e alunas, há, em geral, uma atitude contrária à guerra mas, ao mesmo tempo, comprovo que existe uma grande falta de formação nas questões que se relacionam com o conflito. Como venho comprovando nos últimos anos, os estudantes universitários têm um desconhecimento muito grande relativamente a tudo o que se relaciona com os conteúdos da educação e cultura da paz. Nos resultados do questionário inicial de ideias e atitudes prévias, que todos os anos realizo junto dos meus alunos, assim como nas dinâmicas exploratórias de grupo, esta situação fica muito clara. São muito poucos os que leram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a maioria associa a paz com a ausência de guerra ou de violência física, vê o conflito como algo  negativo, etc...
Apesar disso, no caso concreto da guerra do Iraque, tanto os estudantes do ensino secundário como os universitários estão a dar uma resposta que me atreveria a qualificar de exemplar.

Tendo em conta o papel tradicionalmente neutro da escola, considera que os professores devem manter essa neutralidade ou, pelo contrário, tomar uma posição perante os seus alunos?

A suposta neutralidade da escola é um dos principais mitos no qual assenta o modelo técnico-tradicional da educação. Como dizia o filósofo espanhol Adolfo Sánchez Vázquez, trata-se da "ideologia da neutralidade ideológica". Não é possível uma tal neutralidade, já que diariamente fazemos escolhas que implicam questões ideológicas e de valores. A opção pela democracia a que nos referimos anteriormente é em si mesma uma tomada de partido e portanto não neutral. O mesmo se passa em relação à necessidade de manter um sistema multilateral frente ao unilateralismo norte-americano.
Os professores devem explicar as razões das suas tomadas de posição respeitando, ao mesmo tempo, as opções dos estudantes. Isto é, procurarem um equilíbrio que não inclua nem a neutralidade nem o adoutrinamento, próprio dos sistemas autoritários que experimentamos em Portugal e em Espanha com as ditaduras. Educar para a paz não é uma opção neutral e, tal como estamos a assistir, está a ser questionada pelos sectores fundamentalistas e reaccionários da sociedade. O fundamentalismo, como o adoutrinamento, são antitéticos da democracia, de uma livre e exaustiva discussão, da liberdade de pensamento, etc... O adoutrinamento e o fundamentalismo são estratégias postas em campo pela extrema direita, nomeadamente quando esta pede um retorno ao ensino clássico e aos conteúdos tradicionais.

A violência e a indisciplina nas escolas é um fenómeno que tem vindo a acentuar-se nos últimos anos nas escolas portuguesas. Apesar disso, ainda não assume proporções como a que estamos habituados a ver em países como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha ou a França, onde ela se traduz inclusivamente em casos de morte. Como caracterizaria a realidade espanhola?

A violência e a indisciplina são dois conceitos claramente distintos, e esse é precisamente um dos problemas com que nos deparamos ao abordar este tema. A situação da indisciplina não atinge proporções tão graves quanto se pretende fazer crer em determinadas esferas profissionais, mas também não é tão "boa" como se refere noutras. Nesse sentido, considero que na perspectiva de determinadas posições políticas e profissionais estará a confudir-se interessadamente a indisciplina com a violência, quando são dois aspectos totalmente diferentes. Porém, não haja dúvida que se constata a existência de processos que, seguindo um caminho paralelo, amplificam a gravidade da situação ou, pelo menos, turvam a sua percepcão.
Mas se por um lado assistimos a um aumento da indisciplina, por outro vemos que ela está relacionada com a incapacidade dos professores do ensino secundário em lidar com ela, por não estarem preparados para "encaixar" a diversidade inerente a esta etapa da escolaridade. Além disso, há também que ter em conta a falta de recursos humanos por parte da administração educativa, mais preocupada em ter os estudantes nas aulas do que em verificar a qualidade do processo educativo. Tão pouco é alheio a esta dinâmica a própria mudança de valores que se está a produzir na nossa sociedade. O consumismo, as referências ao dinheiro fácil, a perda do valor da capacidade de esforço e de sacrifício, do respeito, a indistinção entre autoridade e autoritarismo, etc., são aspectos que estão a  contribuir negativamente não só no conjunto da sociedade como também no campo educativo. Portanto, a degradação das relações de convivência não é um aspecto unicamente assacado ao sistema educativo e muito menos aos estudantes.

Projecto educativo, «Aprender a Convivir»,  coordenado por Xesus Jares

Está a coordenar um projecto educativo na área de Vigo, chamado "Aprender a Convivir", através do qual se propõe contribuir para trabalhar as diferenças e abordar o conflito de uma maneira construtiva. Como surgiu este projecto e como está a decorrer?

O Programa educativo municipal "Aprender a convivir" é uma iniciativa do grupo Educadores/as pola Paz-Nova Escola Galega, assumida pela Concellería de Educación e Muller da Câmara Municipal de Vigo, e pretende oferecer ao conjunto dos cidadãos, e muito particularmente aos diferentes sectores da comunidade educativa, uma série de propostas e recursos que proporcionem a construção de uma convivência assente no respeito mútuo, na democracia e solidariedade entre todas e todos, sem nenhum tipo de discriminação e violência.
O Programa não pretende ser fechado sobre si mesmo. Não se trata de oferecer um conjunto de orientações e materiais para que outros os apliquem, mas antes explicitar princípios  e normas de actuação a partir dos quais podemos construir colectivamente um projecto de intervenção para favorecer a convivência. Partindo das opções oferecidas pelo programa, cada escola pode optar por aquelas que maior interesse lhe suscite. As propostas e recursos adequam-se à formação dos três níveis de ensino e oferecem serviços de assessoria, de mediação, trabalho directo com os alunos, materiais de apoio; etc.
Apesar de já termos concluído a primeira fase deste programa, que se iniciou há três anos, temos de ser prudentes na sua avaliação. Porém, temos dados que nos permitem acalentar algum ânimo, principalmente devido ao elevado número de escolas que nele se inscreveram - 28 - entre públicas e privadas concertadas, só na cidade de Vigo. O único factor que haverá a comentar em tom crítico é o facto de haver um significativo desfasamento entre o número de estabelecimentos de ensino básico e secundário inscritos, com um significativo pendor em favor dos primeiros, quando são precisamente os professores do ensino secundário que mais se queixam da conflitualidade. Mas, em todo caso, é um número de escolas que supera em muito as nossas expectativas iniciais.
Em segundo lugar creio que também ser muito importante referir a boa aceitação que este programa obteve junto dos cursos de formação de professores, dos cursos de formação de mediadores/as de estudantes do secundário e das acções de formação de encarregados de educação. Em terceiro lugar, também é de destacar o bom acolhimento que tiveram os materiais elaborados especificamente para o programa, tanto em Vigo como no resto da Galiza e do território espanhol, de tal forma que a maior parte foi inclusivamente reeditado.

O projecto está limitado ao concelho de Vigo ou há perspectivas de alargá-lo aos restantes centros educativos da Galiza?

O programa foi criado para as escolas situadas na cidade de Vigo, mas estamos em negociação com outras cidades igualmente interessadas em impulsionar programas semelhantes. Há que referir que as eleições municipais em Espanha se realizam no final de Maio, pelo que estamos condicionados pelos resultados das mesmas. Porém, posso afirmar com segurança que no próximo ano lectivo o programa Aprender a Convivir começará também a funcionar em outras cidades galegas.
 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Xesús R. Jares
Profesor da Facultade de Ciencias da Educación, Universidade da Coruña. Coordinador de Educadores/as pola Paz, Nova Escola Galega
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Xesús R. Jares
Profesor da Facultade de Ciencias da Educación, Universidade da Coruña. Coordinador de Educadores/as pola Paz, Nova Escola Galega

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