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A Guerra mata a cultura

«É o rei de todas as criaturas que vivem neste mundo inferior,
e sobre todas ele assentou um poder soberano»
(As mil e uma noites)

Os adeptos da guerra viram no Iraque enormes manifestações de alegria. Os iraquianos ? qual final da 2ª Guerra Mundial ? saudavam as tropas de libertação que passavam. A alegria do povo era indescritível. José Manuel Fernandes, o ilustre director do PÚBLICO, vendo, comoveu-se e soltou uma lágrima. Equivocaram-se. As mãos no ar não eram um gesto de saudação. Eram uma expressão de medo do ocupante. Um gesto de rendição. Um modo de deixar claro que estavam desarmados. Que não transportavam nem bombas nem armas. Que eram inocentes e se rendiam.

Após a invasão do Iraque pelas tropas anglo-americanas, não vi imagens de alegria, mas vi alegres pilhagens.  Mas não foi isso que viram os defensores da guerra, esses,  após o derrube de Saddam, sentiram a urgência de se justificar  e de justificar  a destruição e a carnificina.
Já aqui escrevi sobre comportamentos de senhores, servos e criados. Os senhores sempre fruíram com naturalidade a riqueza e o poder. Aos servos e criados deixam o encargo de lhe defenderem a ideologia, os interesses, a fazenda e a imagem.  Os senhores da guerra têm, em todo o mundo, a sua criadagem e esta defende, com emoção e calor, os interesses dos senhores.
Os vassalos trouxeram agora para a praça pública vários argumentos justificativos da bondade da guerra ainda em curso. Acusam aqueles que a criticam de fazerem «piedosas declarações sobre o número de mortos que a guerra causou». «As baixas civis existiram, mas não atingiram os números mirabolantes de alguma propaganda», dizem. Ou seja, na opinião dos criados-comentadores-jornalistas-guerreiros, não se devia falar de mortos e feridos, porque «não tendo morrido o meio milhão de que alguns falaram» é como se não tivesse morrido ninguém.  Seguindo este inteligente raciocínio o 11 de Setembro não existiu! Na verdade, naquele dia, «só» morreram perto de duas mil pessoas e não as quinze ou vinte mil que se chegou a temer. Logo, coisa de pouca monta!
Também dizem que «a verdade é que, se muitos morreram, muitos outros foram salvos. Ou vão ser salvos», pelo que valeu a pena a carnificina. O argumento é de que estava em marcha uma matança no Iraque e portanto valeu a pena matar agora alguns milhares de mulheres, crianças e homens para salvar os futuros mortos do regime. É uma troca de mortos. Uma espécie de mate agora e salve depois. Raciocínio inteligente! Entre nós, morre-se muito nas estradas. Seguindo o raciocínio dos defensores do «mate agora salve depois» devíamos instituir a pena de morte para uma boa parte dos nossos condutores. Em vez de multa e consciencialização  por transgressão ao código, tiro na nuca. Assim podíamos salvar muitos de virem a morrer, no futuro, em acidentes!
Também afirmam que «muitas das vítimas civis resultaram de terem sido utilizadas pelos iraquianos como ?escudos humanos?» e de «os militares [iraquianos] se terem misturado com as populações, violando as leis da guerra». De facto a tropa iraquiana mostrou-se, além de trôpega e mal armada, desorganizada. Podiam ter vestido camisola preta, com alvo branco desenhado no peito e ido para o deserto a sinalizar, com uma bandeira azul, a sua presença. Era mais filmico. Deviam ter-se identificado claramente como alvo. Mas não. Transgrediram as leis da guerra e ficaram junto da população! E esta levou, assim, com umas bombas inteligentes  e de peso em cima.
«Nunca uma guerra desta dimensão fez tão poucas vitimas», vangloriam-se. Não sei com que critérios os criados medem a relação dimensão da guerra e vítimas. Porque lhe atribuem uma «enorme dimensão»? Fruto da sua propaganda? Pelas forças fabulosas que afirmaram estarem sob o comando do ditador? Pela existência da temível e super-bem-armada Guarda Republicana? Pelo perigo das terríveis armas de destruição maciça? Pelo perigo das fabulosas cidades subterrâneas imaginadas pela polícia política americana? Pelo imaginável fragor do choque entre dois temíveis exércitos? Ou pelo que a realidade demonstrou?
Pois bem, o que nós vimos não foi uma guerra. Vimos a ocupação de um país poeirento e pobre. O Iraque, além de um ditador doméstico, não possuía um exército capaz de defender o país, menos ainda de ameaçar fosse quem fosse. Não tinha armas de destruição maciça. O que tinha resumia-se a uns milhares de velhíssimas Kalashnikov e meia dúzia de mísseis enferrujados e tontos. As razões invocadas pelos senhores da guerra para a fazerem mostraram-se falsas.
Nós, cidadãos comuns, sem satélites e serviços de espionagem, até podíamos acreditar na propaganda. Mas os Governos americano e inglês  conheciam perfeitamente a situação. Sabiam que mentiam à opinião pública internacional. Conheciam a fraqueza do adversário em armamento e também lhe reconheciam a riqueza das reservas de petróleo. Foi esse conhecimento que determinou a invasão e o modo de conduzir a guerra e não o facto de «os aliados arriscarem uma arrojada guerra terrestre, onde se sabia que muitos morreriam», como afirma o entusiasta da guerra e ilustre director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes. Produzisse o Iraque repolhos em vez de petróleo e ninguém tinha feito a propaganda que foi feita. Ninguém se teria dado ao trabalho de construir a fábula do ameaçador exército iraquiano. Não teria havido invasão nenhuma.
Os criados vêm glória onde apenas vislumbro ambição mesquinha, interesses económicos, estratégicos e políticos, gosto pelo poder, pelo sangue e pelo saque. Os senhores sabem o que querem, manobram e tiram proveito. Os criados justificam-lhe  reverentemente  as ambições.
Neste inicio de Primavera, no Iraque, não assistimos a uma guerra mas a um acto de ocupação com vista à pilhagem. Uma luta entre o campeão mundial de pesos pesados e um magricela arrumador de automóveis. Um acto desigual e por isso obsceno. Um acto terrorista contra o povo iraquiano. Terrorismo é querer obrigar um povo a render-se pelo medo. «Choque e pavor». Foi o que tivemos e temos no Iraque. É a chantagem terrorista que paira sobre outros povos.
Esta ocupação não foi «um acto de libertação». Foi o contrário. Foi um acto de ocupação. Culturalmente esta guerra já foi mortífera. A destruição de museus, bibliotecas  e monumentos do Iraque, com a conivência das forças de ocupação, foi um dos actos mais bárbaros e miseráveis da história das guerras. Os ocupantes preparam-se agora para pilhar bens económicos e destruir valores ideológicos  e culturais do povo iraquiano. Esta guerra nada tem a ver com «ameaça terrorista», democracia, segurança ou «armas de destruição maciça». É económica, política e ideológica.  A pilhagem económica que se vai seguir, não ficará atrás em barbárie e banditismo internacional,  à destruição cultural e ideológica  já em marcha.
A morte e o sofrimento de milhares de iraquianos e a destruição da cultura já ocorridas são irremediáveis. Talvez ainda se vá a tempo de salvar alguma coisa da economia, dos valores e da cultura do povo iraquiano. Assim o povo não seja traído por alguns dos seus e seja capaz de impor a expulsão dos ocupantes e de escolher livre e pacificamente o seu destino.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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