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Gole a gole

Estima-se que mais de 60% dos jovens com idades entre os 12 e os 16 anos sejam consumidores regulares de bebidas alcoólicas. Nessas idades, o consumo acontece no seio da família, aparentemente com o consentimento dos pais. Apesar de conhecerem esta realidade os médicos insistem na tolerância  zero ao consumo de álcool em menores de 16 anos. A PÁGINA foi a uma escola básica saber o que os alunos pensavam sobre o consumo de bebidas alcoólicas.

A sucessão habitual do horário é interrompida. No final da aula de apoio de Português, a turma do 8º ano da Escola Básica 2+3 Nicolau Nasoni, no Porto, vai ter uma visita. A aula que se seguirá, a de Educação e Cidadania, vai por isso começar um pouco mais tarde. ?Está aqui uma jornalista para vos fazer algumas perguntas?, anuncia Teresa Moreira, directora de turma, ao entrar na sala. Vamos falar do consumo de bebidas alcoólicas.
O tema é melindroso. Por isso, minutos antes de nos conduzir à sala, Teresa Moreira esclarece: ?Não há casos de alcoolismo na escola!?, razão pela qual a temática do consumo de álcool não é habitualmente abordada nas aulas de Educação e Cidadania, apesar de ser sugerida num dos livros que servem de apoio a esta disciplina. ?A menos que os alunos queiram falar do problema?, constata a directora de turma. ?Mas como não existem casos de alcoolismo na escola ? insiste ? abordamos temáticas mais angustiantes para esta comunidade educativa: o consumo de droga, os problemas familiares e o respeito pelos idosos.?
Muitas vezes a referência ao consumo de álcool é confundida com uma outra realidade: o alcoolismo. Esse é o motivo de tantos cuidados. Mas enquanto 10% da população portuguesa é alcoólica, 50% é consumidora de bebidas alcoólicas. Ainda assim, ?a sociedade não reconhece que tanto uns como outros podem vir a ter problemas com o álcool?, alerta Paula Dias, socióloga do Centro Regional de Alcoologia do Norte. Isto, porque ?estamos habituados a ver as bebidas alcoólicas como parte integrante da nossa dieta alimentar?, mas ?o álcool é uma droga como outra qualquer?, avisa a socióloga.
Paula Dias entende que a abordagem de temáticas relativas aos problemas inerentes ao consumo de álcool não pode estar dependente da existência ou não de casos de alcoolismo. Até porque, na opinião da socióloga, ?não é de esperar que eles ocorram na escola?. E este facto não contraria a existência de um consumo de bebidas alcoólicas entre os jovens no seio da família. Por isso ?a prevenção nas escolas deve ser feita antes que estes casos de alcoolismo aconteçam?, defende.
De novo na sala de aula, a turma, entre os 13 e os 16 anos, está já preparada para responder às primeiras perguntas. A desinibição é mais evidente entre os rapazes. Como estão em maioria são eles que tomam a iniciativa. A lista de bebidas alcoólicas conhecidas é ampla. As descrições do sabor e as observações do "gosto" e "não gosto" seguem-se umas atrás das outras. A professora ?finge? que não está na sala. A sua presença, contudo, não causa qualquer inibição na turma. Por isso, a professora torna-se ?visível? e lá vai respondendo a algumas interpelações dos alunos sobre a temática.
Os comentários continuam num tom informal. À medida que vão querendo intervir os alunos põem o dedo no ar, como se de uma aula se tratasse. ?O meu pai deixa-me beber cerveja em casa?, atira o Rui, 16 anos. Não é o único na turma.. Mas do que os rapazes gostam mesmo é de champanhe. Bebem-no nas festas de aniversário e sempre que em casa se comemora qualquer acontecimento. Joana, 14 anos, torce o nariz ao champanhe: ?Sabe a maçã podre!? Os colegas agitam-se: ?É bem bom!? Mas Joana insiste no mau gosto da bebida. E contrapõe: ?Gosto mais de Baileys! Sabe o que é professora??, interroga a aluna. E antes que a professora diga alguma coisa ela esclarece: ?É um licor docinho e sabe a leite!? A referência de Joana à bebida mobiliza a turma que entre interjeições de bom grado confirma que realmente o Baileys é ?muito bom?. Surgem nomes de bebidas em catadupa. O Pisang Ambon reúne alguns adeptos. ?O Martini também é docinho?, comenta a Joana. No fundo da sala o Rui tem o dedo no ar. ?Eu gosto mais de Cuba Livre.? Surpreendida, Teresa Moreira pergunta: ?O que é isso?? Rui, entusiasmado por estar prestes a elucidar a professora, responde: ?É rum com coca-cola!?

O simbolismo do álcool

As estimativas referem que mais de 60% dos jovens com idades entre os 12 e os 16 anos são consumidores regulares de bebidas alcoólicas. Os dados, retirados de uma publicação da Direcção Geral da Saúde (2001), intitulada ?Álcool e problemas ligados ao alcoolismo em Portugal?, mostram até que ponto o consumo de bebidas alcoólicas pode estar a ser tolerado. No início, no seio da famíla, mais tarde socialmente. Apesar dos alertas médicos para os malefícios desta tolerância...
?Eu até podia dizer aos pais que um copo de mês a mês ou no dia dos anos não faria mal, mas deve dizer-se a verdade: do ponto de vista do rigor químico e biológico o consumo de qualquer tipo de bebida alcoólica nestas idades é gravoso para a saúde?, avisa José Barrias, director do Instituto de Alcoologia, no Porto, e um dos autores daquela publicação. E sublinha: ?O organismo dos menores de 16 anos não tem a capacidade de metabolizar uma bebida alcoólica seja de que tipo ou dosagem.?
Entretanto, sentado na carteira em frente à secretária da professora, Pedro, 13 anos, parece não estar a apreciar os comentários dos seus colegas. ?Daqui a pouco pensam que somos uns bêbados!?, contesta. Prontamente a professora tranquiliza o aluno. ?Nada disso! Eu já expliquei a esta senhora que nesta escola não há casos de alcoolismo entre os alunos.?
O comentário do Pedro muda o rumo da conversa. O que pensa a turma do consumo de álcool entre os jovens? ?Mostram que são homens?, atira um rapaz do fundo da sala. ?É uma maneira deles se divertirem!?, comenta o Rui. A professora intervém: ?Vocês acham que os jovens só se divertem com álcool?? Há um breve silêncio quebrado timidamente pela Joana. ?Eu acho que não precisamos de beber álcool para nos divertirmos!?
As observações dos adolescentes, na opinião de Paula Dias, são elucidativas do simbolismo associado ao consumo de álcool. ?Tal como acontecia entre as gerações passadas, o álcool ainda está associado à virilidade?, explica a socióloga. Do mesmo modo, ?a capacidade de aguentar determinada quantidade de álcool no sangue é um factor valorizado?.
Por outro lado, entre os jovens o álcool é fonte de uma série de ?vantagens?: ficar mais à vontade com os amigos, o que facilita a integração no grupo. ?Ter um copo na mão é um factor de pertença entre os jovens que desta forma mostram aos outros o que são e o que querem ser?, refere Paula Dias. Por fim, a atitude dos jovens em relação ao álcool acaba por ditar no seu consumo.        
Face a este cenário, a socióloga critica a existência de uma desadequação entre a mensagem da prevenção e os problemas reais dos jovens com o álcool. ?Não vale a pena fazer uma acção de prevenção sobre as consequências do consumo excessivo de álcool se os jovens não reconhecerem esse problema como seu. Até porque eles não vão continuar a ver nenhum mal em beber um ou dois copos só para se divertirem.?

Nota: Os nomes dos menores citados são fictícios

José Barrias, médico psiquiatra, director do Instituto de Alcoologia

(a oferta e a procura de bebidas alcoólicas em menores de 16 anos)

Só um plano de alcoologia global vai conseguir dar uma resposta a esta situação [do consumo de bebidas alcoólicas em menores de 16 anos]. Porque uma coisa é existir um plano de saúde alcoológica, outra é avançar com um plano global do álcool que faria com que os intervenientes que estão do lado da oferta ? produtores, promotores e vendedores de bebidas alcoólicas ? fossem integrados no processo preventivo. Isto, de modo a que não tivessem prejuízos económicos com medidas alternativas [que visassem a redução do consumo de álcool entre os jovens]. Um vinhateiro, por exemplo, poderia ver os seus terrenos ocupados por uma plantação de kiwi ou encaminhar as suas uvas para a produção de sumo em vez de vinho.
Tem de haver uma sinergia entre a oferta e a procura de bebidas alcoólicas. Se não veja-se a contradição: por um lado proibimos a venda de álcool a menores de 16 anos, por outro fazem-se campanhas espantosas de promoção e festas patrocionadas por marcas onde até se oferecem bebidas alcoólicas! Isto acaba por sabotar qualquer plano de saúde alcoológica...

Paula Dias, socióloga, Centro Regional de Alcoologia do Porto

(alteração nos padrões de consumo de bebidas alcoólicas)

A maneira como estamos a consumir é mais perigosa. Os nossos pais consumiam vinho às refeições durante toda a semana.  Os nossos filhos podem não consumir álcool durante a semana, mas chegam a quinta e sexta-feira e consomem grandes quantidades de bebidas com uma forte graduação alcoólica, como é o caso das bebidas destiladas. Para além de isto ser mais prejudicial à saúde, acarreta  mais riscos do ponto de vista social.

(álcool como meio de adaptação social)

Provavelmente o álcool estará a servir como meio de adaptação social. Então, isso significa que há instituições que estão a falhar na socialização dos jovens, e daí recorrerem ao álcool. Isto parece óbvio, já que os jovens dizem que consomem bebidas alcoólicas para se sentirem desinibidos, para conseguirem comunicar com os outros, para se aproximarem de um rapaz ou de uma rapariga e para esquecerem os problemas. Muitos não consomem por prazer, nem sequer apreciam a bebida. E se isto está a acontecer, o que está a falhar na nossa sociedade?

          


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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