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A história que eu tinha guardada

O trabalho foi progredindo, as crianças foram descobrindo os nomes das letras e para que serviam, montavam palavras, formavam seus nomes, construíam frases. Produziam pequenos textos.

Depois de algum tempo me veio a lembrança de minha história de alfabetizadora.
Eu fora indicada para uma escola multiseriada na zona rural de Caxias, onde ficaria sozinha com as crianças.
No final de cada dia as crianças perguntavam: «tia, amanhã tem aula»?
Ter aula todo dia era o mínimo para mim, embora para elas seria o novo, pois nunca haviam tido aula todos os dias. Mas as crianças sinalizavam o desejo de ter aula todos os dias. Indignada com essa situação, decidi que dali por diante haveria aula todos os dias, fizesse sol ou chovesse. A partir desse dia a escola mudou, adquirindo outro sentido.
Todo dia aparecia um aluno novo. Na segunda semana de aula chegaram cinco crianças juntas. Todos da mesma família. Umas já haviam freqüentado a escola, mas haviam evadido, as outras nunca haviam estudado. A mais velha, de 9 anos, disse que ainda não havia entrado na escola porque morava no alto da serra e antes não valia a pena ir para a escola, pois não tinha aula todos os dias. E a turma ia aumentando. Eu ficava feliz, embora me preocupasse. Me perguntava se daria conta da tarefa.
Fui conhecendo cada criança em suas particularidades e as diferenças iam aparecendo. Algumas já haviam perdido a esperança de aprender a ler. Outras ansiavam por aprender. Para minha surpresa, com exceção da turma de alfabetização, todas sabiam escrever, mas não liam. Eu poderia dar um livro imenso que todas copiavam e bem, mas não liam.
Como a turma era multiseriada, dividia o quadro em quatro, passando  exercícios para cada turma em cada parte do quadro. Os mais adiantados acabavam rápido e ficavam esperando. Mandava que logo fossem respondendo. Mas eles não aceitavam, me dizendo estar faltando alguma coisa. Assustada descobri que o que faltava era a resposta a cada pergunta. Uma aluna da 3ª série me disse: «Eu não sei ler. Como vou responder»?  Mais surpresa, descobri que a antiga professora respondia cada pergunta com uma cor diferente, para não ter trabalho sequer de corrigir.
Inconformada, resolvi alfabetizar todas as crianças. Insegura me perguntava como alfabetizaria. Que método utilizaria? Depois de fracassar com o método recomendado pela Secretaria de Educação, resolvi trabalhar com jornais, revistas e livros usados. As crianças começaram a se interessar. Recortavam letras, juntavam e formavam palavras E ficavam bastante agitadas, e eu, muito nervosa.
Como não estava conseguindo trabalhar com tantas crianças, resolvi dar aula em outro turno. Conversei com as crianças, e elas aceitaram. 
Com a separação das turmas o trabalho foi progredindo, as crianças foram descobrindo os nomes das letras e para que serviam, montavam palavras, formavam seus nomes, construíam frases. Produziam pequenos textos. A cada dia eu ficava mais maravilhada com a turma e a turma ia crescendo. Os pais que não tinham mais esperança de que a escola funcionasse, começaram a me procurar e seus filhos iam retornando à escola. A turma cresceu tanto que a Secretaria de Educação ofereceu-me um contrato. Três meses depois mandou mais uma professora para me ajudar porque já havia 56 alunos.
Acreditei desde o início que a turma tinha possibilidade e desejo de aprender. Concluía que eu apenas estava colaborando para   ajudá-las em seu processo de apropriação do conhecimento da leitura no desenho da escrita.
Quando fui para essa escola eu era uma espécie de faz tudo, dirigia, dava aula, limpava a escola e o quintal, fazia merenda. Agora a antiga  merendeira retornara e nós trabalhávamos juntas no que antes eu fazia sozinha..
Estava feliz, as crianças aprendiam e os pais estavam acreditando em meu trabalho.

Estou nesta escola até hoje.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Lenilsa de Matos Pinheiro
Grupo Alpha - Pesquisa em alfabetização das classes populares - Univ. Federal Fluminense, Brasil
Lenilsa de Matos Pinheiro
Grupo Alpha - Pesquisa em alfabetização das classes populares - Univ. Federal Fluminense, Brasil

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