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Ascêncio de Freitas - um escritor a descobrir
Nascido na Gafanha da Nazaré (Aveiro) em 1926, nessas terras da beira-mar tão evocadas por Raul Brandão nas páginas admiráveis de Os Pescadores, Ascêncio de Freitas partiu muito cedo para Moçambique onde viveu durante trinta anos e só regressou a Portugal em 1977 para aqui consolidar uma obra que por direito próprio devia merecer posição de relevo na nossa moderna literatura. Em 1959, publica o primeiro livro de contos intitulado Cães da Mesma Ninhada, mas as preocupações da vida fizeram-no interromper essa natural vocação de escritor e só em 1979 voltaria a publicar novo livro, Ontem Era a Madrugada. Homem de vários ofícios na sua forma de realização pessoal, Ascêncio de Freitas carregou consigo o peso literário de pertencer a uma geração que de todo se revelou nos anos sessenta que foram de boa memória na cena cultural portuguesa. Mas é verdade que Ascêncio de Freitas não pertence a nenhuma geração literária, uma vez que a vida se encarregou de o levar para longes terras e, quando voltou a Portugal, já depois de Abril ter chegado, quase todos os lugares estavam ocupados e só a pulso podia abrir o seu próprio caminho. E foi o que fez, em silêncio e solidão, a sós com os fantasmas da Gafanha da infância e adolescência. E pelas páginas das suas histórias, ontem e hoje, perpassam as gentes de que nos sabe falar, com o rigor e descrição de gestos e palavras, que não deixa de nos fazer relembrar o modo e o acto como Raul Brandão soube fixar na sua galeria de Os Pescadores, essas mulheres da Murtosa, Mira, Ovar, Ílhavo ou Gafanha, dizendo que ?são feias e ingénuas, sempre metidas na água a rapar o moliço?,mas que sempre se afirmam como ?mulheres capazonas?, como por lá se diz, dispostas a tudo, afeitas à vida e aos sacrifícios, às desventuras e desgraças que sempre lhes batem à porta. Por isso mesmo, a ti Ana Arneira lembrada por Raul Brandão, ?mulher atarracada e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho?, tem muito a ver com as mulheres que aparecem nas histórias de Ascêncio de Freitas, não por viverem e sentirem essa mesma realidade humana e social, mas sobretudo por ser gente do povo simples, capaz de se lançar à vida, e com quem claramente melhor o Autor se identifica.
Nesta colectânea de ficções, recuperadas de alguns dos seus livros que entretanto se esgotaram, no modo sabido de utilizar a linguagem certa e o vocábulo exacto, Ascêncio de Freitas afirma-se como um narrador inventivo e interventivo, denuncia as razões ou desrazões da vida que as suas figuras evidenciam, mas tudo se faz no conhecimento dessa própria utensilagem - a língua portuguesa que maneja com talento e se modela de acordo com o ambiente e o sentido de todas as histórias, contos ou ficções, e assim se justifica o breve glossário que aparece no final do livro para facilitar a compreensão dos leitores quanto ao dialecto local que envolve e explica as ?estórias? passadas da sua experiência em África.
Claro que estamos de acordo com Eugénio Lisboa que afirma, no  prefácio deste livro, tratar-se aqui de ?um narrador de grande linhagem?, mas podemos também dizer que Ascêncio de Freitas, na lembrança de outros autores que andam por aí tão esquecidos e não deixaram de se ocupar da ?epopeia dos humildes? na faina no mar (e, ao acaso, podemos aqui referir António Santos Graça, Aleixo Ribeiro, Loureiro Botas, Alves Redol, Vasco Branco ou Idalécio Cação), valoriza esse círculo literário que faz das gentes piscatórias o sentido mais forte e presente da sua criação literária.
Já dissemos que Estória do Homem que Comeu a sua Morte, título da última e mais singular história que fecha o livro, é um conjunto de contos escolhidos de seis dos seus livros, mas reside nisso um dos grandes  motivos de interesse: ou seja, o propósito de se descobrir nestas histórias o verdadeiro e surpreendente ficcionista e dessa forma se abrir caminho no prazer de conhecer outros livros. Na verdade, Ascêncio de Freitas é também autor de outras obras de prosa ficcional como Crónica de Dom António Segundo (1983), Carmen Era o Nome (1996), Na Outra Margem da Guerra (1999), A Reconquista de Olivença (Prémio Vergílio Ferreira, 1999), o Canto da Sangardata (Prémio PEN Clube Português, 2000) e ainda há pouco foi galardoado com o Prémio Literário Ferreira de Castro, do Município de Sintra, com o seu romance A Noite dos Caranguejos.
Mas o que mais importa sublinhar é sobretudo o sentido narrativo e estrutural dos contos de Ascêncio de Freitas e alguns dos seus melhores aparecem neste livro: trata-se de facto de um prosador que reinventa ou rememora os cenários da sua própria vida, traz à superfície os conflitos e males de todos os humilhados e ofendidos deste mundo (e não do outro), revelando um domínio absoluto da linguagem, numa forma literária bem próxima de um ?realismo mágico? que se consuma ainda na evocação das terras africanas. Mas o que se deve colocar em relevo é que o propósito das suas histórias está sempre relacionado bem de perto com a realidade ou a crueza da vida, porque Ascêncio de Freitas não enjeita nem recusa falar daquilo que a vida lhe ensinou e fez conhecer.

Ascêncio de Freitas
O HOMEM QUE COMEU A SUA MORTE
Ed. Caminho / Lisboa, 2002.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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