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Ninguém vence a Rute

A Rute é uma menina de sete anos. A Rute é uma menina pobre. Anda no 2º ano. Mas a vida tem-lhe sido madrasta e a Rute tem mais com que se preocupar do que com o saber se está no 1º ou no 2º ano. Vai fazendo e gozando o que a escola lhe der. A Rute tem cinco irmãos, mas só um dos irmãos conhece o pai. Os outros são filhos só da mãe. E chega.
A Rosa é professora do 1º ciclo, uma professora primária. Vende aulas há dezoito anos. Teve sorte na vida. Casou com um pequeno industrial. Na sala que é só sua, preocupa-se em dar matéria. Passa férias em Punta Cana. Trata o filho por menino. É dona de uma estridente voz. É agressiva em quase tudo. Nos berros como nos gestos.
Julga-se senhora de uma indiscutível superioridade moral e intelectual sobre as crianças. Uma superioridade que perturba. Olha as crianças através de uns óculos que pendura na ponta do nariz. Tem um olhar seráfico e maléfico. Uns olhos que parecem irradiar ódio.
Da escola diz não tirar gozo algum. Veste a bata quando chega, e isso é o bastante para se tornar professora. Impessoal, mas professora. Tem os alunos em constante rédea curta.
A primeira é minha aluna. Tenho mais doze, que não se afastam muito do género. A segunda trabalha na mesma escola em que eu trabalho. É a minha colega. Não tenho outra.
Hoje, uma das crianças chamou-me. A Rute fizera xixi em pleno recreio. Bem à vista de todos. Se fosse minha aluna... Olha a  mal educada. Rosa dixit.
Mesmo a mim ? professor com fama de não bater nas crianças ? aquilo do xixi no recreio gerou algum incómodo. Encontrei a Rute encostada à parede exterior da escola, a chorar e com um olhar de raiva mal contida. Perguntei-lhe o que se passava. Não me respondeu. Peguei-lhe na mão, falei com ela. Veio-me à memória um texto do Rubem Alves sobre a mansidão.
- As professoras acham que podem gozar comigo, mas eu também gozo com elas ? Rute dixit.
Quedei-me pelo espanto e dei-lhe razão.
À noite, em casa, procurei o Horizonte Cerrado do Alves Redol. Eu sabia haver uma passagem no início do livro que ilustrava bem os sentimentos daquelas crianças. É verdade: elas sentem. "O Fatinário parecia esperar as palavras do amigo, para doçar aquela expressão de ódio que nem ele sabia explicar inteiramente - havia na sua alma uma raiva surda por tudo o que o rodeava e lhe trazia desejos de fazer mal a alguém. Sacudiu Luís pela camisa, embora tivesse vontade de lhe sorrir e de o levar consigo; aquele sentimento, porém, misto de ira e de mágoa, não o deixava dominar-se".
Dorme em paz, querida Rute. Sonha com os anjos.


  
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Carlos Coelho
Professor, Braga
Carlos Coelho
Professor, Braga

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