Página  >  Edições  >  N.º 121  >  Lençol não é meio de comunicação, professora?

Lençol não é meio de comunicação, professora?

Como abrir as portas da escola para a diversidade cultural presente em nossa sociedade? Como romper com a hierarquia de saberes, ideologicamente construída?

No trabalho que realizo como professora de alfabetização de operários nos canteiros de obra da Construção Civil, consigo perceber a multiplicidade de saberes presentes em sala de aula. Trabalhadores, jovens e adultos, os alunos trazem consigo ricas experiências adquiridas na luta pela vida. Construir uma prática pedagógica que respeite e valorize esses saberes no cotidiano escolar vem sendo um grande desafio.
A valorização desses saberes implica em conhecê-los e para isso é necessário estimular os alunos a expressarem verbalmente suas opiniões e romper com o que Paulo Freire chama de «cultura do silêncio» a que os alunos são ideologicamente submetidos. Cultura, «em que as classes dominadas se acham semimudas ou mudas, proibidas de expressar-se autenticamente, proibidas de ser».
Num primeiro momento, os alunos resistem a tomar a palavra, já que tiveram e têm sua palavra negada e com ela seus conhecimentos, sua cultura. Aprenderam que, na escola, existe uma pessoa autorizada a falar e outras destinadas a ouvir, obedecer às ordens e a fazer «dever». Eles só libertam as vozes quando se sentem seguros e percebem que serão ouvidos. Suas vozes vêm, então, alimentar o diálogo necessário não só à prática educativa, como à existência.
Através delas é possível perceber as lógicas distintas em que operam seus raciocínios, dúvidas, contribuições, associações. As falas vêm carregadas de suas histórias, de seus valores, das experiências vividas em diferentes contextos sócio-culturais.
Nas aulas procuro trazer fatos do cotidiano, na intenção de que os alunos consigam descobrir as relações existentes entre o que estão aprendendo e o que já conhecem, estimulando-os à reflexão. Porém, às vezes me surpreendo com a capacidade que alguns revelam para fazer tais relações. Assim foi quando discutíamos o conteúdo de uma carta e perguntei-lhes que outros meios de comunicação conheciam. Eles falavam, enquanto eu registrava no quadro, quando um deles, que tem o apelido de Paiacan, disse: ? «Lençol». Cheguei a pensar na possibilidade de fingir que não ouvira, para não precisar dizer diante da turma que a resposta estava errada. Afinal, não conseguia ver  lençol como meio de comunicação. Mas resolvi pedir que ele explicasse.
Paiacan poderia ter se calado, mas, mostrando estar seguro do que dissera, respondeu: ? «Vê-se que a senhora não é da roça. Quando a senhora olha pra frente aqui, o que a senhora vê»?  Respondi que via casas, prédios. Então ele prosseguiu: ? «Mas, lá na roça não é assim não, quando tá na roça a gente vê a casa e é muito distante pra mulher chamar a gente pro almoço. Então quando o almoço está pronto, a mulher coloca um lençol numa vara e finca no chão. Lá da roça nós vemos o lençol e sabemos que é hora da comida. Lençol não é meio de comunicação,  professora»?
Ao dar essa resposta, Paiacan mostrou que se apropriou do conteúdo que a escola estava apresentando e o associou à sua vida. Ele trazia um saber local, existencial, cultural e o colocava em diálogo com o conteúdo escolar, que se pretende saber global.
Por vezes, a escola se fecha em suas explicações teóricas, tentando dar uma interpretação única e deixa de compartilhar a diversidade de conhecimentos trazida pelos alunos, restringindo e dificultando a visão dos acontecimentos do cotidiano escolar.
Após a explicação de meu aluno, com a mesma segurança que ele demonstrou, respondi que sim, que lençol é um meio de comunicação. E comecei a refletir sobre como a escola pode se constituir um instrumento perverso de negação de saberes ou de acolhimento dos mesmos, dependendo do olhar e das práticas pedagógicas utilizadas.
Essa reflexão me provocou alguns questionamentos: como abrir as portas da escola para a diversidade cultural presente em nossa sociedade? Como romper com a hierarquia de saberes, ideologicamente construída? Apontou ainda para a importância de se discutir com os alunos o sentido político da desqualificação de seus saberes.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 9 ed. São Paulo, Paz e Terra, 2001.

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Ana Paula de Abreu Costa de Moura
Univ. Federal Fluminense
Ana Paula de Abreu Costa de Moura
Univ. Federal Fluminense

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo