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À espera de Lula

O inimaginável interesse que os portugueses manifestaram, através dos diversos  órgãos de comunicação social,  desde o início da  campanha eleitoral,  pela ascensão   de Lula da Silva à presidência do Brasil, será logo explicado pela excepcionalidade de um facto que ainda remetia a memória dos jornalistas com mais de cinquenta anos para a ficção  dos filmes "populistas"  de Frank Capra, - como "Um Homem do Povo" ou "Peço a palavra" - nos quais  o "impossível" acontecia: um "homem do povo" lograva galgar as fronteiras   do "poder instalado", que o "costume" identificava  como uma  inerência  das oligarquias.  
Com efeito, havia de sensibilizar a opinião pública a  singularidade desse facto único num país onde o Poder fora sempre  uma emanação das classes dominantes, com o seu rosto militar ou civil, e precisara de esperar quase oitenta anos para ver despontar o "tempo fraternal", em que "qualquer brasileiro digno poderia governar o Brasil", como augurava Gilberto Freyre, num entusiástico poema de 1926... Pois bastava a expectativa para justificar as notícias,  geralmente temperadas com  uma interrogação ou uma dúvida: até que ponto os "donos do poder" permitiriam que a "torrente popular" de Lula da Silva chegasse à  "foz". 
No mesmo plano das expectativas, aliás,  se colocavam as interrogações  ideológicas  comuns à Direita e à Esquerda, em que  a apreensão, a dúvida  e a esperança, perante uma erupção das "forças populares", abalavam igualmente os pressupostos da actual "lógica" das democracias europeias, segundo a qual já não é pensável uma revolução social, ou uma mudança que se lhe equipare,  sem a participação ou o consentimento do poder militar. Os portugueses tinham o exemplo do "25 de Abril"...
Pois Lula chegou à presidência, cumprindo rigorosamente a "lógica" da democracia parlamentar (é sempre útil lembrar que há outras formas de democracia), e hoje, conservadores ou progressistas, todos esperam para ver o resultado final de uma escolha feita pela primeira vez unanimemente por todos os eleitores  pobres e também por  muitos dos remediados, que constituem a maioria esmagadora do povo brasileiro. 
É que a própria história do Brasil, designadamente a dos  últimos cinquenta anos, faz de Lula um desafio à lógica getuliana da "revolução de cima para baixo" e a  si próprio: não se tendo apagado da memória colectiva desfechos como o desconcertante suicídio de Getúlio Vargas,  a renúncia  de Jânio Quadros e o exílio de João Goulart, devidos  às pressões das forças  económicas e militares, internas e externas, o desafio a que  Lula se propôs,  encorajado pela fé do seu povo até agora despojado de razões para acreditar numa mudança vinda de baixo para cima,  é um desafio à sua capacidade e resistência para alterar o modelo dos regimes "vigiados"  que até há pouco enformaram o Brasil - e que reaparecem, ciclicamente, em  quase toda a América Latina, como vulcões não extintos.
O que está hoje  à prova e  se espera, no Brasil e no mundo que a ele está ligado por interesses materiais ou culturais, como Portugal,  é o resultado  de uma desejável  "solução social", sem tiros nem prisões, exigida pelo voto pacífico do povo em liberdade,  que aspira a não ver repetidas as expectativas frustradas na Argentina, no Peru e no México ou  no Chile "social" de Salvador Allende antes  de Pinochet e Fujimori.
O que todo o mundo espera é que o presidente Lula - na "literatura de cordel" ele será cantado, certamente, como outro mítico "Cavaleiro da Esperança", em refigurada encarnação de Prestes,  Villa ou Zapata - consiga provar  que ainda é possível realizar uma verdadeira democracia plena, em que as sindromáticas  contradições sociais sejam  dirimidas por consenso;  que a classe média é capaz de se pôr ao lado dos pobres; e que os ricos, transfigurados por uma súbita consciência recristianizada, podem evitar  que a luta de classes se afirme, inelutavelmente, como  uma alavanca da justiça social.


  
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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