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Carta da leitora Maria José Magalhães

Caro José Paulo Serralheiro:

Em primeiro lugar venho expressar a minha enorme tristeza, como sócia do SPN e leitora da Página, pela chamada na primeira página referente à entrevista com Francisco Maia Neto (FMN). Mais uma vez, e suponho que não intencionalmente, as expressões denotam uma profunda e enraízada discriminação contra as mulheres, neste caso, contra as mães.
"FMN fala de delinquência juvenil, dos meninos que roubam afectos roubados e diz que o Estado gastaria muito menos se ?pagasse às mães para não trabalhar durante os primeiros três anos de vida dos filhos."
Esta ideologia, que conhecemos já do pós-guerra e dos famosos estudos de Bowlby quando o Estado americano pretendia reenviar as mulheres para casa, foi e tem sido amplamente denunciada pelos movimentos de mulheres e pelo feminismo internacional e em Portugal. Que FMN expresse essa opinião tem para mim um significado, mas que a PÁGINA a coloque em chamada na primeira página sem um reparo, é já um outro assunto. Para mais que este sindicato apelou à greve geral e, entre outras coisas, a nossa luta na greve geral era contra um código de trabalho que vai neste sentido: enviar as mulheres mães para casa. Aliás, solicitei a Mário de Carvalho que me enviasse as alterações que Bagão Félix fez do Anteprojecto para a Proposta de Lei, e segundo o e-mail que dele recebi (o que fico muito grata) os ataques ao apoio à maternidade e paternidade continuam na Proposta.
Mas a própria entrevista de Francisco Maia Neto é contraditória:
Ele afirma que os menores são "abandonados pelos pais", mas depois acha que devem ser as mães a ficar em casa.
Afirma que o Estado colocava em conjunto, até 2001, as crianças em risco e abandonadas com as crianças acusadas de crimes ? situação que diversas pessoas denunciaram e felizmente que a Lei mudou, embora as práticas institucionais ainda não tenha mudado (veja-se Colégio Santo António, para além de que têm dispensado animadores e trabalhadoras/es nessas instituições). Mas logo em seguida considera que o problema reside nos primeiros anos de vida. (Mais uma vez, assisitimos ao reemergir da literatura de tipo científico que já conhecemos do pós-guerra, onde se tentava que a delinquência ficasse sobre as costas das mães, já que o Estado precisa de um bode espiatório).
Num país onde as mulheres não têm ainda possibilidade de escolher se podem ou se querem ou não ser mães (o aborto continua clandestino), onde alguns patrões as obrigam a um compromisso de não engravidarem; onde as actuais leis da maternidade, paternidade, parentalidade, aleitação, etc., têm sido ignoradas em muitos sectores privados; onde um código de trabalho em aprovação significa um retrocesso enorme a este respeito, onde todos os estudos indicam que grande maioria dos homens não comparticipa nas despesas da casa e com os seus filhos, onde 80% dos homens divorciados com filhos não pagam as pensões de alimentos, onde 99% das famílias monoparentais são encabeçadas por mulheres, o que signifca para uma mulher ficar 3 anos em casa a ser paga pelo Estado para se dedicar completamente aos filhos? Em termos de carreira, de ascenção nos empregos, não é preciso dizer mais nada. Será que o Estado estará disposto a pagar-lhe o défice que ela vai sofrer em termos de carreira (por exemplo, docente)? E nas pensões de reforma, esse dinheiro durante os primeiros anos de vida vai contar para a reforma quando os filhos forem maiores e ela estiver velha?
Mais ainda, se o abandono é dos «pais» porque não colocamos a nossa reflexão sobre as soluções para o problema também nos «pais»?
Há mais uma coisa a referir: não está provado que as mães que ficam a tempo inteiro com os filhos evitam problemas de delinquência futura. Este foi um debate extremamente vivo nos Estados Unidos a seguir às publicações de Bowlby. As investigações feministas (ver Andreé Michel, Ann Phoenix, McRobbie, entre muitas outras) mostram que as mães "domésticas" têm mais probabilidade de desenvolver relações patológicas menos saudáveis com os seus filhos, para além de que mostraram maior probabilidade de doenças psiquiátricas com o sindroma do "ninho vazio".
Pelo contrário, estudos extensivos mostraram que as e os filhos de mães trabalhadoras têm mais sucesso escolar, têm uma auto-estima mais elevada, têm mais sucesso no emprego quando adultos e mais capazes de organizarem a sua vida profisisonal e familiar. Estatisticamente, isto é ainda mais relevante para as raparigas filhas de mães trabalhadoras.
Isto são resultados dos Estados Unidos.
Mas se pensarmos na situação aqui em Portugal, será que FMN tem noção da trajectória de vida das crianças acusadas de crimes? Estou em crer, dos estudos que têm sido levados a cabo por alunas/os minhas/meus aqui das Ciências da Educação, e pelos relatórios de estágio, que estas crianças são maioritariamente provenientes de famílias onde a mãe não trabalha, e o pai muito menos.
Claro que não discordo da ideia de que estas famílias precisam de apoio financeiro. Precisam. Mas não concordo que seja para a mãe ficar em casa a tomar conta dos filhos. Algumas experiências com o Rendimento Mínimo Garantido, que exigia um plano de reinserção social, mostraram muito bem sucedidas, e estou convicta que muito mais do que qualquer solução tipo "Obra das Mães".
Pertenço a uma ONG de Direitos das Mulheres (UMAR) e temos já bastante experiência de trabalho com mulheres. Precisamente, aqui no Porto, seguimos alguns casos de mães e tentamos acompanhar os cuidados que são prestados às crianças. Digo já que é infinitamente mais complicado com as mulheres desempregadas reflectir com elas como organizar as horas das refeições, os momentos de levar as crianças a entrar em contacto com outras para se socializarem, as horas dos banhos, as idas ao médico, etc. O facto de terem um emprego significa para elas uma ideia de utilidade, têm um ritmo e uma atitude de vida que lhes permite colocar a criança num infantário, ou organizar as solidariedades familiares ou de vizinhança.
E para acabar, não são as crianças das mães que trabalham que estão na rua nem as que se deitam à meia-noite.
Muitas experiências haveria para contar, muitos estudos para citar.
Apenas esta nota, José Paulo: por favor, escreva alguma coisa na próxima PÁGINA. E por favor dê-lhe o destaque de primeira página, também.
O acesso das mulheres ao trabalho, a reivindicação "salário igual trabalho igual", a luta pela conciliação entre vida familiar e vida profissional para mulheres «e para homens», os direitos de «parentalidade», e não só da maternidade, etc., são aspectos da vida social que um sindicato de docentes que se diz e estamos em crer que o seja, de esquerda, não pode passar por cima com esta ligeireza.

Um abraço,

Maria José Magalhães
FPCE da Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Maria José Magalhães
FPCE da Universidade do Porto
Maria José Magalhães
FPCE da Universidade do Porto

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