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Alfabetização: encontro ou confronto de desejos?

Um jovem, de uns 15 ou 16 anos, nos procurara, jornal dobrado embaixo do braço, porque «queria muito aprender a ler jornal». Namorava uma sua vizinha que cursava a 4ª série em  outra escola e estava preocupado com o fato de que ela, ao ir para a série seguinte, conheceria meninos ?mais adiantados?, ?mais informados?, com ?mais conhecimentos? e que, talvez por isso, não quisesse mais namorá-lo.

A história a seguir ocorreu numa das escolas públicas de horário integral, na cidade do Rio de Janeiro, no horário noturno em que funciona o Programa de Educação Juvenil, destinado a jovens analfabetos ou semi-alfabetizados.
Um jovem, de uns 15 ou 16 anos, não me recordo com certeza, nos procurara, jornal dobrado embaixo do braço, para se matricular porque «queria muito aprender a ler jornal». Namorava uma sua vizinha que cursava a 4ª série em  outra escola e estava preocupado com o fato de que ela, ao ir para a série seguinte, conheceria meninos ?mais adiantados?, ?mais informados?, com ?mais conhecimentos? e que, talvez por isso, não quisesse mais namorá-lo. Assim, resolvera aprender a ler para se manter atualizado através da leitura do jornal. Segundo sua percepção, ler jornal diariamente seria uma forma de manter-se informado e atualizado podendo, portanto, estabelecer uma conversação com a namorada capaz de se igualar ao tipo de conversas que a mesma teria com seus colegas de escola, vistos todos como possíveis e ameaçadores rivais.
Passado um mês, ou um pouco mais, entrou ele em nossa sala e dirigindo-se a mim, abriu o jornal e me mostrou, com a voz embargada, que ainda não conseguia lê-lo. Conversei com ele, tentando fazê-lo entender que o processo não se dava de uma hora para outra, que, com certeza, algumas palavras ele já conseguiria identificar, mas não houve jeito. Ele sabia que não sabia. Chamei a coordenadora do programa e a professora da turma para me inteirar do que acontecia e ambas foram unânimes em afirmar que, apesar do esforço por ele demonstrado, se recusava a realizar qualquer tipo de tarefa que não fosse a leitura do jornal.
A angústia do jovem contagiou a todos os que trabalhavam à noite. A coordenadora e o auxiliar de administração, cada um a cada vez, tomaram a si a tarefa de ensiná-lo a ler. Em ambas as ocasiões, quando já começavam a achar que ele estava progredindo, ei-lo que entra em minha sala novamente, com o jornal debaixo do braço, para comunicar que estava deixando a escola, que não aprendia mesmo, que era um ?cabeça dura?, que ia perder a namorada, mas que ia desistir. Antes que eu pudesse responder, virava as costas e ia embora.
Um belo dia, lá aparecia o jovem de novo, jornal embaixo do braço... Um mês e pouco depois, lá ia ele embora de novo. Essas idas e vindas se prolongaram bem por uns dois anos, quando, afinal, não só já tínhamos avançado na mudança de nossas práticas, como ele, também, se dispôs a ter mais paciência conosco e, finalmente, aprendeu a ler. E não perdeu a namorada!
Seu desejo era intenso e sua cobrança de imediatez colocava em cheque essas certezas da cultura escolar. O envolvimento de sujeitos que desempenhavam outras funções na escola foi-se dando como forma de responder a uma situação que a todos incomodava. Ninguém queria que ele perdesse a namorada; ninguém queria que a escola fosse responsável por isto. E, cada um tentava de um jeito diferente. O desejo dele mobilizou nosso desejo de ajudá-lo. A última a ser mobilizada foi a própria professora da turma. Quando isto ocorreu, sentiu-se capaz de abandonar a segurança do caminho já conhecido e partir para o que de fato interessava, não só a ele, mas aos demais, trilhando um outro caminho, com todas as inseguranças que um novo percurso nos proporciona. Suas aulas tornaram-se mais vivas, promovendo discussões sobre fatos que os alunos demonstravam curiosidade. A necessária paciência e persistência para decodificar o código letrado foram sendo conquistadas na medida em que assuntos da atualidade eram também discutidos em aula, ampliando e aprofundando saberes.
A tendência à rotina, à repetição dos mesmos passos, das mesmas etapas, ainda que obtendo resultados adversos, pode estar presa à não identificação de quais são os desejos de nossos estudantes. O que querem? Para que desejam aprender a ler? O que pretendem fazer com a leitura e a escrita? O que elas podem lhes proporcionar? São perguntas que podem nos dar pistas para examinarmos até que ponto esses múltiplos desejos se encontram e se confrontam em nossas salas de aula; e nos encorajam a abandonar nossas muitas certezas, iniciando a difícil trajetória por «mares nunca dantes navegados».


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Joanir Gomes de Azevedo
Fac. de Educação da Univ. Federal Fluminense, UFF, Brasil
Joanir Gomes de Azevedo
Fac. de Educação da Univ. Federal Fluminense, UFF, Brasil

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