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Salvar a Venezuela

Nos últimos anos a Venezuela tem sido tema recorrente nos media. Foi através deles, sobretudo pela televisão, que acompanhei com viva inquietação o golpe de Abril de 2002 contra Hugo Chávez. Para os mais atentos ele não terá sido inesperado.

Como hoje, naquela primavera o ar estava impregnado de um hálito intenso ao Chile de Allende. A dúvida não era se o golpe se daria ou não, mas quando é que ele se daria. Simpatizante da causa bolivariana, a frustração tomou conta de mim quando as notícias falaram na derrubada da ordem constitucional e no encarceramento do Comandante no forte Tiuna. Como era isso possível, se Chávez, um bravo oficial pára‑quedista com prestígio entre os seus camaradas de armas, tinha o apoio das classes populares e de outras camadas sociais, se as promessas do neoliberalismo já não faziam vencimento na América Latina e Bush se encontrava empenhado no Afeganistão, a contas com a tal guerra contra o terrorismo? 
As coisas acabariam, contudo, por conhecer desenvolvimentos inesperados. O governo instituído à pressa pelos golpistas e liderado pelo patrão dos patrões foi imediatamente contestado pela insubordinação popular e pelos sectores nacionalistas do exército. Desafiando ostensivamente os canalhas que usurparam o poder, tomaram as ruas para exigir o regresso do seu Comandante e a deposição imediata dos golpistas. Regressado ao poder pela vontade e acção colectivas das classes populares e dos soldados que se recusaram a obedecer ao golpe orquestrado por Washington, parecia que o líder bolivariano estava mais forte do que nunca para empreender uma transformação radical nas estruturas económicas e sociais da Venezuela, sem a qual não será possível resgatar a colossal dívida social que o país tem para com os mais pobres, as gentes das favelas, os camponeses, os meninos da rua, os negros, os mestiços e os indígenas. No seu discurso de retomada de posse, Chávez manifestou desejar fazê-lo ao proclamar ?a Deus o que é de Deus, a César o que é de César e ao Povo o que é do Povo?.
Quase um ano depois, e sem que as mudanças tenham avançado grandemente, a Venezuela está de novo num impasse. Com o apoio da alta hierarquia católica, da burocracia sindical corrupta e de algumas camadas da pequena burguesia, também elas golpeadas pelo neoliberalismo mas contaminadas pelo receio infundado de perderem o pouco que ainda detêm, as elites tentam uma vez mais derrubar o regime. No momento em que escrevo, a oposição esvaziou-se: a produção petrolífera foi normalizada, as ruas continuam nas mãos dos bolivarianos, Chávez conta com o apoio precioso de Lula e do PT que não ignoram que a Venezuela é uma das linhas da frente das lutas emancipatórias contra a globalização neoliberal na América Latina.
Chávez e o movimento bolivariano ? o mesmo se aplica aos nossos companheiros brasileiros ? que se cuidem. Apesar das derrotas sucessivas, as elites estão apostadas em correr todos os riscos, incluindo o de mergulhar o país numa guerra civil, como justamente observou Ignacio Ramonet. Apoiadas nos seus largos recursos económicos e nas suas televisões, rádios e jornais, vão continuar a sabotar o enorme solavanco de esperança e dignidade que a Venezuela vive. Como diligentemente nos é servido pelos media caseiros comparsas, a estratégia dos poderosos assenta na mentira e na calúnia. Desde acusar Chávez de aliado do narcotráfico até ao de crimes contra a humanidade, passando por coisas ?menores? como ser amigo de Fidel Castro, tudo serve para tentar manipular as angústias dos menos politizados e incitar as camadas sensíveis aos discursos das classes dominantes ao boicote da ordem constitucional.
O Manifesto ensina-nos que ?homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada?. O tempo neste pedaço sofrido da América Latina é de luta aberta, sem tréguas, opondo os poderosos e privilegiados aos oprimidos, aos explorados, a todos os que simplesmente exigem justiça. Hugo Chávez sabe-o muito bem!


  
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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