Página  >  Edições  >  N.º 120  >  Os do costume andam felizes e contentes

Os do costume andam felizes e contentes

Em Portugal sempre existiram coros. Para além dos belos coros alentejanos, colectividades de todo o país dinamizam este tipo de canto. Até as universidades jovens vão tendo os seus coros à semelhança das mais antigas. Os coros para além do prazer que dão aos cantores são motivo de prazer para os que gostam de os ouvir. Mas o que agora canta mais alto é o coro dos contentes.

Nos últimos tempos, tem-se vindo a afirmar, com vigor público e notório, um novo coro. Trata-se do coro dos contentes. Fazem parte dele inúmeras pessoas, mas as que dele mais sobressaem são alguns políticos e, particularmente, alguns fazedores da opinião pública. Estes cantores andam felizes e excitados com o poder dominante. No peito, o coração pula-lhes de alegria sempre que o governo toma mais uma medida penalizadora dos trabalhadores. Se alguém insultar quem trabalha, o coro eleva a voz de felicidade. Se a medida for no sentido de defender a destruição do Estado, então o coro harmoniza vozes para exaltar o feito.
O coro dos contentes não canta só o poder  nacional. Os cantores conhecem o repertório oficial do poder internacional. Este coro detesta a Europa e canta com paixão as músicas que lhes distribui o Governo americano. Para eles Bush é o maior compositor destes últimos decénios. Nem Reagen nem Tatcher  se lhe comparam. A ideia de mandar soldados americanos e ingleses matar iraquianos, produz um frémito e enche o peito aos cantores soltando-lhes as vozes movidas pelo orgulho e pela paixão. Cantam dizendo que os maus, escondidos nos corpos das crianças, das mulheres, dos jovens e dos velhos iraquianos, vão finalmente ser esmagados sem dó nem piedade.
O coro canta contra os demónios que põem entraves aos negócios do petróleo e das armas e põem em causa a superioridade da raça branca, caucasiana, sobre as restantes raças que poluem o mundo. Os brancos, canta o coro, nasceram para gerir, viver bem, avaliar e mandar. A gente de outras cores para obedecer e trabalhar. Os brancos, canta o coro noutra estrofe, que não exaltem a superioridade da civilização ocidental, não merecem a vida, não são brancos, são negros disfarçados, são comunistas com pactos com o demónio negro, árabe, índio, mestiço, asiático, hispânico ou disfarçado de qualquer outra raça ou cor.
Neste início de Fevereiro o coro dos contentes anda radiante. Por todo o lado, os governos que contam, mostram-se exigentes para com os pobres e remediados. O controle sobre o trabalho é maior. Os trabalhadores, essas almas danadas, estão a ser metidos na ordem. Os patrões recuperam poder, prestigio, sabedoria e santidade. O povo dispõe-se a obedecer-lhes. O deus capital é cantado na imprensa, rádio e televisão e nas várias instâncias internacionais. Os apóstolos do poder dominante sentem os seus esforços recompensados. E a cereja no bolo é que vamos ter mais uma guerra a sério com vitória previamente assegurada. O coro canta apaixonadamente a nova ordem internacional e o poder paga-lhe com mãos largas.
Cada época constrói o seu futuro e as suas ruínas. É tão importante pensarmos no futuro que queremos deixar aos vindouros como nas ruínas que farão parte dele. Mas isso o coro não sabe. Os elementos do coro não querem saber das ruínas que o poder dominante provoca. Miséria, exclusão, fome, doença, analfabetismo, a maior parte da população do mundo a viver como se os últimos séculos de trabalho humano não tivessem existido. Cegos, vivem a paixão do poder dominante. Cantam a subjugação do mundo a um punhado de gente que não sabe que a vida é efémera e que vive como se fossem os donos da história. Mas a realidade não é assim. Deles ficarão no futuro as carcaças das guerras e da miséria que provocaram no presente. E ficará o ódio, a raiva e a revolta. Ruínas a dificultarem o caminho que nos poderia levar da barbárie à civilização.

Falta-nos formação política

A maior parte da população mundial ouve o coro dos contentes porque a isso é obrigada. Não escolhe a música, tropeça constantemente nela. E não está preparada para se defender dela.
Entre nós, para já não falar dos mais velhos, uma maioria dos nossos jovens mostra-se indiferente à coisa pública. Sabem mais de telemóveis do que da organização da sociedade e do Estado. Sucessivas gerações de portugueses transitam para a universidade ou directamente para o mercado de trabalho sem conhecerem sequer os traços mais elementares da organização do poder público, desde o modo como se elege e funciona uma junta de freguesia ou câmara municipal, até à diferença de poderes e competências dos tribunais, do Parlamento, do Presidente da República e do Governo.
Falta educação cívica e política logo no nosso ensino básico. Falta uma disciplina obrigatória em todo o nosso ensino secundário sobre as linhas fundamentais da organização política da sociedade e do Estado, do Poder Local ao Governo central, e sobre os mecanismos fundamentais em que assenta a vida social e política. É lamentável que entre nós persista o total analfabetismo político. A democracia exige a alfabetização política da população o que nada tem a ver com doutrinação e tudo a ver com informação, conhecimento, aumento da autonomia e da capacidade crítica de cada um. Fosse a população mais politizada e o canto do coro dos contentes ser-lhes-ia insuportável.
O Estado, aqui com o silêncio cúmplice e comprometido do coro, têm-se demitido da responsabilidade de colocar à disposição das jovens gerações a educação política. Este mesmo Estado, aqui suportado pelo canto do coro, é zeloso no que toca à garantia do direito à educação religiosa nas escolas. Ora a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. A educação religiosa é uma tarefa da responsabilidade única das igrejas a que os jovens eventualmente pertençam.  Separar as águas é uma exigência da democracia. O Ministério da Educação, na sua frágil proposta de reforma do ensino secundário, devia ser obrigado a acolher a formação política devida a toda a população. Sem esta formação seremos mais pobres e mais incapazes de distinguir o som de um coro alentejano do coro dos contentes do neoliberalismo.

A futbolização da vida política

Pelo menos da boca para fora, são muitos os que se lamentam da crescente indiferença dos cidadãos face à política. O aumento da abstenção eleitoral, a reduzida participação na vida cultural, cívica e política, o encolher de ombros face ao que nos é comum, são comportamentos correntes de muitos cidadãos. Não é de estranhar que uma maioria crescente da opinião pública vá encolhendo os ombros e dizendo que os políticos são todos iguais, ou, que nada sabem  ou querem saber de política. O poder dominante, para dominar, precisa que predomine o analfabetismo político.
Quando o analfabetismo político predomina é natural que tudo pareça igual e seja visto com a mesma indiferença um político que deseja que se vão matar iraquianos e outro que se opõe a tais assassínios. Por outro lado, a falta de formação permite que a actividade política seja cada vez mais futbolizada. Assim, muitos políticos adoptam o comportamento dos hooligans, defendendo fanaticamente as suas cores e, pelo seu lado, os meios de comunicação social preocupam-se apenas em transmitir os resultados das contendas entre adeptos.
O neoliberalismo é a nova religião do capital. Os apóstolos e os cantores da nova religião não estão interessados na formação política dos cidadãos. Essa formação tornaria mais difícil a hegemonia da religião neoliberal dominante. A religião neoliberal fomenta o desmantelamento do Estado. O coro canta diariamente o desprezo pela política enquanto organização do espaço público partilhado e canta, com fervor, o predomínio dos interesses privados. O deus mercado é exaltado como voz única que define o pensamento único e o fim da história. Cabe aos que não fazem parte do coro dos contentes, juntar-se, criar e fazer soar as melodias da civilização que se pode opôr à barbárie.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo