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Um facto

?Quero-me confessar, Padre?Não estou certa de ser capaz? Pode confessar-me, Padre? Tenho um homem.?
?Como? Oh não, de forma alguma! Evidentemente que somos casados. De branco, órgão e tudo. Incenso e lírios. E eu disse sim, e todos estavam contentes e a minha mãezinha chorava e??
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?Só um momento. Já lá vamos. Eu era uma pobre rapariguinha. Olhos grandes e tranças. Ele chegou de carro. Era grande e forte. Levou-me ao cimo de um monte e, com voz clara e ressoante, falou do futuro. Tinha tantos planos. Eu acariciava os botões brilhante de metal da sua farda. Gostava de aproximar o meu rosto deles e ver-me reflectida como um espelho.?
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?Sim, sim, Padre. Evidentemente: eu sabia que isso era vaidade. Estou arrependida. Depois casámos.?
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?Não, de maneira nenhuma. Ele não mudou depois de casarmos. Sempre foi firme, mas também muito carinhoso. É claro, tivemos as nossas desavenças, mas nunca nada de grave. Estávamos quase sempre juntos, praticamente nunca me deixou só.?
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?Deus meu, Padre, como pode pensar uma coisa dessas? Francamente? Sim, já ouvi falar disso, mas ele não é. Nunca. Nada que se pareça.?
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?Talvez. Não sei ao certo. Mas não foi ele quem veio confessar-se, fui eu. Estou aqui em busca de ajuda. Preciso dos seus conselhos. Quero ser con?solada. Não, não estou a chorar. Pegue na minha mão, Padre.?
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?Pois. É claro que casei com ele por amor. Qual é o meu pecado? Pode perguntar a qualquer pessoa. Todos lhe dirão como ele é, respeitado e cheio de boas qualidades.?
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?Como??
?Não, nunca. Defacto, jamais. Nunca lhe fui infiel, nem mesmo em pensamentos. Sempre fui uma esposa fiel. Acredita-me, Padre??
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?Não.?
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?Não.?
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?Também não.?
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?Qual é então o meu problema? Padre, eu vim aqui? Não! É inacreditável. Depois de ter vivido sete anos com ele? O Verão passado fomos de férias. Convenci-o a descansar. Tem um trabalho importante, muito trabalho, de enorme responsabilidade. Todo o país? Uma manhã, ao pequeno almoço, sentávamo-nos nós um em frente do outro. Atrás dele estava uma janela aberta. Por ela via eu o jardim, as árvores? O papel da parede da sala tinha desenhos de florinhas, milhares de florinhas cor-de-rosa. Erguia ele a chávena quando o olhei. Não havia qualquer razão especial ou intenção atrás do meu olhar. Foi então que vi??
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?Que vi? Como é que só após sete anos reparei? Depois de partilhar a sua mesa e o seu leito? Aconselhe-me, Padre, porque pequei.
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?Foi só então que dei conta que ele era de plasticina.?
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?Sim, completamente. Todo artificial. Inclinei-me para ele. Os meus olhos deviam estar muito esgazeados, porque ele pousou a chávena e disse calmamente: - Que aconteceu? ? Não, desta vez não estou enganada. Sempre for a de plasticina. Todo! Mas porquê, porque nunca reparara antes? E agora que vai ser de mim??
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?Anulação do casamento? Mas Padre, isso é impossível! ? Temos filhos.?


  
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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