Página  >  Edições  >  N.º 119  >  O segredo do aprendizado ? Jogar com a vida

O segredo do aprendizado ? Jogar com a vida

As crianças preferem começar a aprendizagem pela prática. Nos jogos perdem pouco tempo a analisar os ambientes e partem para a acção. Perante o insucesso estabelecem estratégias de tentativa e erro. Pela prática acabam por descobrir a lógica do sistema.

Um garoto de 15 anos pede ao pai que compre um jogo de computador. Para jogar, o garoto não realiza a leitura do manual, prefere começar direto pela prática. No jogo, se lança para conhecer: personagens, ambientes, ações, ferramentas, busca no sistema uma lógica, a lógica das relações dos objetos componentes do sistema: a lógica a que está submetido no mundo real. Coisas do mesmo tamanho devem ter mesma força. Um ser vivo não pode ficar por muito tempo debaixo d?água sem respirar. Com raríssimas exceções, um tiro mata. E assim sucessivamente.
Não perde tempo analisando o ambiente e parte para a ação. Como todo jovem, começa subestimando o jogo, tenta inúmeras vezes e é derrotado. Percebe que apenas o senso comum do mundo real em que vive, não basta. Começa seu dilema: o que me impede de vencer? Neste momento, se vê tentado a buscar o manual e aprender a jogar. Parece lógico que basta tomar conhecimento de como as coisas funcionam. Mas não o faz. Ele resiste a leitura do manual e volta para o jogo.
Agora, está ciente de como é necessário conhecer melhor aquele novo mundo, e erguer a partir da sua experiência ali, uma proposta de senso comum. Observa o ambiente novamente. Estabelece estratégias de tentativa e erro, investe de forma acentuada nas variáveis, busca seus limites mínimos e máximos, atinge estados de equilíbrio nos quais percebe ter maior domínio sobre toda a lógica fugidia do jogo.
Escolhe a maior arma, que lhe exige menos pontaria, sai atirando para todos os lados, acaba morrendo com o próprio tiro contra a parede, ou ao contrário, armas maiores exigem balas maiores e em menor número, suas balas acabam e morre atacado por uma faca do jogador adversário. Nem a faca, nem o foguete. Escolhe uma metralhadora. Avança e sobrevive por mais tempo.
Quando menos espera, meio que de surpresa, atinge o primeiro objetivo, vence a primeira fase. Habilitado para conhecer a segunda fase, percorre todo o caminho novamente, mas desta vez, com variáveis diferentes, outros ambientes, novas ferramentas e personagens. A lógica se amplifica, ainda mais complexa, mas permanece a mesma para todas as fases. Seu objetivo no jogo não é mais o objetivo do jogo, sobreviver ali é sinônimo de vencer, visto que cedo ou tarde, os ambientes vão sendo conduzidos para o mesmo lugar, no sentido de atingir o objetivo do jogo. (qualquer analogia deste modelo lógico de funcionamento com o que chamamos de destino não é mera coincidência).
Sem ler o manual, apenas conhecendo o ambiente, aprende a jogar. O aprendizado não se dá de forma simples, sem seu envolvimento integral, sem errar e morrer repetidas vezes. Mais que tomar conhecimento do jogo, participa de atividades, confere as habilidades que adquire in loco e é avaliado imediatamente, pois não há neste caso, outro significado para sua morte virtual.
Pensar em educação hoje exige uma reflexão sobre as formas de uso destes ambientes para desenvolver nossa curiosidade ingênua, buscando transformá-la em curiosidade epistemológica, superação que se dá na medida em que a curiosidade ingênua se criticiza e ao criticizar-se, metodicamente rigorizando-se na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão. A curiosidade muda de qualidade, mas não de essência, pois é a mesma curiosidade que move e inquieta todos nós, sempre em busca da superação e da transformação nesta curiosidade maior, mais crítica e humana, epistemológica. A educação hoje é a mesma educação que deveria ter sido feita no passado. Não há diferença, há talvez, uma mudança de qualidade, uma superação, com uma essência que se mantém. Da curiosidade para a educação, como propôs Paulo Freire, pedagogo brasileiro e referência mundial, autor da ?Pedagogia da Autonomia?, fonte das idéias expostas neste parágrafo.
Enfim, proponho uma reflexão que justifica o uso das novas tecnologias para a educação: jogar com a vida a uns dez, vinte anos atrás, também ensinava, mas ensinava os outros aquilo que não deveria ser feito, porque o ator do processo dificilmente escapava da morte. Jogar com a vida hoje é apenas mais uma fantasia do universo virtual, e de uma coisa podemos estar certos: ao menos da morte real, estaremos todos salvos por enquanto, e de quebra, podemos até aprender alguma coisa.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Gustavo Gadelha
Serviço Nacional de aprendisagem Industrial (Senai) e Centro de Tecnologia Industrial Pedro Ribeiro (Centid), Brasil
Gustavo Gadelha
Serviço Nacional de aprendisagem Industrial (Senai) e Centro de Tecnologia Industrial Pedro Ribeiro (Centid), Brasil

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo