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Saber-poder das drogas e temporalização

Para além de uma destrinça entre as várias drogas (?) haveria também a referir que esta relação entre a expectativa e a experiência vem a construir-se de forma mediada. É sobretudo aos junkies de heroína que a última parte da asserção se refere (?) quando dos primeiros consumos, a maior parte daqueles não pensa que seja possível vir a ficar «agarrado». No entanto (?) o uso é ocultado.

Num excelente texto publicado em 1979, Reinhart Koselleck faz notar como, depois da assinatura da paz religiosa de Augsburgo, levada a cabo em 1555, foi dado início a um processo no decorrer do qual a percepção do futuro seria radicalmente alterada. Com a passagem da gestão das relações entre o que se viria a chamar ?Estados? para os senhores territoriais, foram criadas as condições para que o dogma do fim do mundo próximo, até aí criteriosa e rigorosamente mantido pela Igreja, deixasse de ocupar todo o espaço conceptual dedicado à reflexão sobre o devir. Até aí dependente da vontade de Deus, a profecia transforma-se então num determinismo de ordem natural, resultante da posição dos astros, para, mais tarde, se transmudar no prognóstico, este último fundado na razão humana. Finalmente, a noção de um futuro apenas dependente das relações estabelecidas entre os homens e, por isso, passíveis de ser transformadas pelas suas próprias mãos. E foi este lento mas contínuo alargamento do «horizonte de expectativa» ? acompanhado pela progressiva erosão da ideia de um tempo composto pela repetição dos mesmos ciclos ? que viria a transformar o «campo da experiência» de uma forma tão profunda quanto se terem tornado possíveis as grandes transformações que constituem os factos que hoje denominamos por Revolução Francesa. Tal como a entendemos hoje e permeando por completo a organização das nossas práticas do quotidiano, a ideia de futuro ? para não falar numa outra que lhe surge agregada, a de progresso ? é resultado de um complexo processo de construção discursiva.
E pegamos aqui a crónica de Luís Fernandes sobre o saber-poder das drogas. Ao definir, difundir e manter a ideia do uso destas últimas como uma inescapável forma de destruição do futuro ? quer dizer, ao reduzir drasticamente o horizonte de expectativa daqueles que usam esses produtos ? aquele dispositivo coloniza todo o espaço de interacção onde esse futuro se constrói. Ou seja, o campo de experiência onde a utilização é levada a cabo é desde logo marcado pela qualidade das classificações a que as drogas têm sido sujeitas. Trata-se, por isso e também, de um dispositivo de poder sobre o tempo.
Para além de uma destrinça entre as várias drogas, cujos consumos se representam e apresentam de maneiras diversas, haveria também a referir que esta relação entre a expectativa e a experiência vem a construir-se de forma mediada. É sobretudo aos junkies de heroína que a última parte da asserção se refere. De facto, e quando dos primeiros consumos, a maior parte daqueles não pensa que seja possível vir a ficar «agarrado». No entanto, e no que se revela a eficácia das representações acima referidas, o uso é ocultado. As consequências deste facto prolongam-se para além da sua ocorrência na medida em que a experiência e as relações desta espécie de mundo invisível para os não utilizadores tendem a estruturar-se e a legitimar-se unicamente por relação a si próprias.
Ora é justamente neste ponto que a dimensão comparativa nos pode ser útil. Independentemente da discussão sobre a forma como o uso de produtos com um potencial psicoactivo integra as visões do mundo de algumas sociedades ditas tradicionais, a realidade é que, nestes contextos, ninguém deixa de participar nas actividades quotidianas só porque usa tais produtos ou, talvez ainda mais importante, ninguém deixa de, pela mesma razão, interagir como até aí com aqueles que os usam. Dito de outra maneira, e ao contrário do que acontece entre nós, a sua utilização não vem a desenvolver-se numa ruptura com os quadros relacionais e agenciais anteriores aos consumos.
É a isto que chamámos mediação. Por muito que os utilizadores de heroína tentem integrar o seu consumo numa vida cujo quotidiano resulte dum prolongamento dos quadros a ele anteriores ? e tentam-no muitas vezes ? a verdade é que raramente o conseguem. Não porque não queiram, mas porque passam desde logo a ser tratados como seres potencialmente perigosos cujas acções são quase sempre encaradas como esgotadas em si. E é também nesta permanente reserva que as suas vidas são temporalizadas, quer dizer, destituídas de um futuro cuja construção vem a ocorrer nas pequenas e grandes coisas do dia-a-dia.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa
Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa

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