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Marés Negras

Um navio bomba-relógio, com o nome de ?Prestige?, implodiu recentemente, como era fatal que acontecesse mais dia menos dia.

Ao afundar-se, a 3500 metros de profundidade, com 75000 toneladas de óleo combustível nos seus esventrados porões, libertou uma maré negra que tem vindo a contaminar o mar e as costas galegas (e, amanhã, quiçá também, o mar e as costas portuguesas) e que continuará a fazê-lo não se sabe por quantos anos mais, com incalculáveis prejuízos.
É um caso flagrante de crime ecológico, que despertou a legítima indignação e revolta das suas vítimas. ?Legítima? porque se trata de um caso igualmente flagrante de incúria governamental, que abrange, neste caso, todos os governos dos países membros da UE ? os governos actuais e os seus predecessores. Todos eles sabem que nós sabemos (ou podemos vir a saber) que eles sabiam que o dito Prestige faz parte de uma lista de mais de 60 outras bombas-relógio em-forma-de-navio elaborada pela Comissão Europeia já há algum tempo. E eles sabem também que nós sabemos que se continuarem a deixar essas 60 bombas-relógio nos mares, sob o pretexto de que são objectos flutuantes, isso equivale a autorizar novos crimes ecológicos, uma forma disfarçada de terrorismo ambiental.

Outras formas de terrorismo

Há, porém, outras formas de terrorismo que não são reconhecidas como tal pelas suas vítimas ? e todos somos, pelo menos potencialmente, suas vítimas. O terrorismo rodoviário, por exemplo, que, só este ano, já fez mais de 1250 vítimas nas estradas portuguesas. Os seus agentes chamam-se incivilidade, arrogância, incúria e estupidez, em doses q.b. Quando tomam a figura de gente (e tomam sempre), não são fáceis de reconhecer porque não usam longas barbas e turbante à Bin Laden, não têm campos de treino militar, nem se vangloriam dos seus crimes em prelecções delirantes. Matam só (e quando não matam, estropiam), sem aviso prévio, sem ideologia, sem comunicados de imprensa,  sem intenção.

Psitacismo 

Há ainda uma terceira espécie de terrorismo, que se distingue das  demais por passar quase despercebida. Entende-se porquê. Não causa vítimas mortais, nem danos materiais. Mais, o alvo dos seus ataques é tão recôndito que parece não existir: a Língua Portuguesa, uma entidade intangível, como são todos os idiomas, mas não menos real do que os oceanos e as estradas. Destarte, não desperta a indignação nem a revolta popular e deixa indiferentes as autodenominadas ?élites?. Na verdade, nem nome tem, o que muito contribui para passar despercebido. Mas posto que é necessário dar-lhe um, se quisermos falar dele, proponho chamar-lhe, à falta de melhor, psitacismo (= imitação do papagaio que fixa e repete palavras cujo sentido ignora).
O psitacismo não é um fenómeno homogéneo. É um conglomerado de tendências unidas por um comum desdém pelo idioma português. Mas uma das componentes do psitacismo, que considera o português uma força de bloqueio, tem uma estratégia. Resumidamente, trata-se de convencer as camadas mais influenciáveis (as crianças, os adolescentes e os novos ricos) que o idioma português pode e deve ser tratado com a mesma sem-cerimónia com que se trata uma bola de couro: dando-lhe pontapés. E que, com um par de botas texanas e um sotaque a condizer com as botas, até na lua podemos dar o nosso coice de mula.  Essa estratégia tem tido um êxito assinalável.

Trégua natalícia

Mas esse assunto terá que ficar para o próximo artigo. Não quero terminar em tom pessimista porque estamos em vésperas de Natal, ?dia de ser bom, dia de passar a mão pelo rosto das crianças, de falar e de ouvir com mavioso tom, de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças?; dia também (como nos lembra o poeta) ?de perdoarmos aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, de meditar na nossa existência, tão efémera e tão séria?, dia, enfim, em que o Pai Natal ou o menino Jesus, irão pôr no sapatinho do Pedrinho uma metralhadora e no sapatinho da Joaninha um telemóvel, desses com máquina fotográfica e tudo.
Façamos então uma pausa para desejar Paz na Terra aos homens de boa vontade e Venturas aos leitores deste jornal, pelo menos no dia Natal, a não ser que o Pedrinho, logo de manhã, estratègicamente escondido atrás das portas, fuzile tudo e todos com devastadoras rajadas, rá-tá-tá-tá-tá-tá-tá!, obrigando as pessoas a caírem no chão como se fossem mortas e fazendo-as erguer para de novo matá-las, enquanto a Joaninha fotografa tudo tim-tim por tim-tim, até mesmo aquele instante mágico em que a mamã e o papá fingirão que caiem crivados de balas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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