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Retratos

(De gente que toda a gente conhece. Gente que está nos sítios por onde toda a gente passa. Gente como a gente com vidas para contar) 

1. Entre a Lux e a Sabrina 

Tem o sorriso franco de quem gosta de vários dedos de conversa. Os olhos emocionam-se quando fala das tristezas da vida. Mas logo sacode os ombros, ajeita o lenço ao pescoço e guarda as lágrimas para si. Na sua banca de rua, Quininha vende jornais, revistas e livros, há mais de 20 anos.
A rua de Passos Manuel, no Porto, não teria a mesma cor se Joaquina da Piedade Pinheiro, 63 anos, mudasse o seu ponto de venda. Abrigada em toldos e guarda-sóis, Quininha resiste à chuva e ao frio. É vendedora desde ?ganapa?. Aos cinco anos já vendia hortaliças no mercado do Bolhão, no Porto. Com a avó, que a criou, vinha a pé de Santo Ovídeo, em Gaia, até aquele mercado. Sempre descalça? Com os ?opecatos? (uns sapatos de pano com atacadores de cordão que se amarravam aos tornozelos). Uma vez apanhou uma multa: ?No tempo do Salazar ? arregala os olhos ? não se podia andar descalço, mas não havia dinheiro para sapatos.?
Não faltam histórias a Quininha para contar. Com nove anos, ia para a lixeira com a avó ?apanhar? vidro para vender. ?Um dia levava um saco com vidro à cabeça, ele rebentou, os vidros caíram-me pela cabeça a baixo e fizeram-me este golpe na perna? ? Quininha mostra a cicatriz, por debaixo da meia de vidro. A avó ? ?que Deus a tenha? ? curou-lhe o golpe com teias de aranha e açúcar amarelo.
Anos, muitos anos mais tarde, as varizes acumularam-se na zona do golpe. Sem concerto, disse o médico que ficou surpreendido com o tal método de cura da avó. Doenças em pequena?, ter-lhe-á perguntado. ?Só falta de tacho!? 
A chuva começa a cair com mais força e obriga Quininha a mover os olhos da infância para a banca. ?Estou à espera que o Rui Rio me dê uma barraca das novas (o sonho de todos os vendedores de jornais), mas ele é assim!? ? sacode o braço e cerra a mão. ?E o negócio vai mal?, remata enquanto folheia a revista Lux. Mais tarde dir-me-á que não sabe ler.
Olho para a prateleira dos livros para ver alguns dos títulos: ?Por toda a minha vida?, ?Com os olhos no coração?, ?Antes do sim?, ?O milagre do Amor?, ?Sonhos de mulher?, ?Adoração selvagem?. Isto vende-se? Pergunto. ?Troca-se!? Responde-me. Os romances da Júlia e da Sabrina continuam a aquecer o coração das senhoras. ?Por 40 cêntimos, trás um leva outro?, explica Quininha.
Numa prateleira mais acima vejo uma revista Playboy meio escondida. E isto é para aquecer o coração dos homens? Pergunto. Quininha dá uma boa gargalhada: ?Depois do 25 de Abril vendeu-se muito disso, era uma loucura! Agora já ninguém liga! Dá tudo na televisão.? 

2. Olh?á lotaria!

Encostado a um dos novos mecos que impedem a circulação automóvel na rua Sampaio Bruno, no Porto, Fernando Florindo dos Santos, vende cautelas. Aos 80 anos já viu melhores dias para o negócio. ?Antigamente ? esse tempo que só a gente mais idosa conhece ? por esta altura (o dia em que andou à roda) a lotaria do Natal já estava esgotada?, desabafa. ?Davam-se prémios melhores, agora o dinheiro vai todo para as televisões e as cautelas são muito caras??
Fernando ?Chora? ? alcunha por que é conhecido na praça - tinha sete anos quando começou a vender cautelas. ?Mas também vendi o melhor jornal que já existiu: o Diário do Norte?, acrescenta para que não falte nada no artigo. 
A rua foi a sua cama durante a infância, pouco depois da morte do pai. ?Dormia com um meu irmão ali, no cavalo!? O dedo indicador virado para a estátua de D. Pedro V na Praça da Liberdade. ?E também ali, no Banco!? Para dar uma ideia vaga da época em que isso acontecia tenta situar-se: ?ainda nem havia a Câmara (o edifício da autarquia do Porto).
O frio e a chuva que apanhou deixaram mazelas. Bronquite asmática e uma doença óssea que o deixou surdo. Não usa aparelho. ?Faz-me muita confusão à cabeça?, diz enquanto gesticula com a mão expressando desconforto. Por isso sente dificuldade em responder às perguntas. Ás vezes não acerta nas respostas, mas logo insiste: ?Conto-lhe tudo, mas não ouço!? E logo redirecciona a conversa à sua maneira. Quer falar das viagens que fez.
?Gozei muito no tempo do Salazar?. Reagindo à minha expressão de curiosidade continua: ?Viajei muito pela Europa. Fui à Suécia, à Itália, conheço a Espanha toda? Só não fui a Londres e à Rússia.? Como? Pergunto por escrito. Pela FNAT (Fundação Nacional da Alegria no Trabalho), a antecessora do INATEL, sorri. ?Ia com os lordes ? explica ? levava-lhes as malas e ia de graça!?
Passa um freguês e a conversa antes de terminar volta-se ainda para o negócio. ?Dantes não podíamos vender cautelas sem chapa no boné. A minha tinha o número 446. Era o Governo Civil que a dava.? E mais contaria Fernando ?Chora? se não tivesse percebido que temos de ir embora. Por isso apressa algumas histórias soltas. ?Se precisar de mais alguma coisa venha ter comigo, estou sempre por aqui!?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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