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Sabedoria translúcida e saber-poder das drogas

O dispositivo de saber-poder das drogas determina hoje de tal modo a percepção que podemos ter sobre o fenómeno ? e a própria auto-percepção do drogado ? que a escuta do que acontece em nós no contacto com uma substância psicoativa está enviesada à partida.

?A droga é a irrupção triunfal da planta em nós?, escrevia Ernst Jünger em ?Drogas, embriaguez e outros temas?. Durante milénios, a alteração dos estados de consciência relacionou as plantas psicoativas com o sagrado, com o ritual, com o festivo e com a cura. Mesmo nos tempos mais chegados a nós, em que o dispositivo medico-farmacológico quis reduzi-las ao monopólio do medicamento, continuaram a suscitar experiências de acesso ao conhecimento: as ?doors of perception? de Huxley ou a ?Política do êxtase? dos anos 60 são capítulos dessa procura de estados translúcidos. Curiosamente, o tipo de conhecimento ancestralmente disponível sobre as drogas ? por exemplo o da farmacopeia tradicional ? e o tipo de conhecimento que estas abrem ? a translucidez do ritual xâmanico, da contemplação cannábica ou da viagem lisérgica ? não parecem ter interessado ao dispositivo de saber-poder sobre o qual assenta a cruzada internacional do ?combate à droga?. É como se os saberes de quem a usa e de quem a combate sejam desencontrados e irreconciliáveis. Exploremos um pouco as raízes desse antagonismo.
 A farmacologia e a medicina foram de início as disciplinas que se encarregaram da explicação das interacções droga-indivíduo. A substituição da farmacopeia tradicional pelo medicamento de farmácia, acompanhou um processo geral ao longo do séc. XIX de transformação e passagem dos saberes tradicionais para o interior de corporações profissionais, à medida que os países mais desenvolvidos faziam da saúde e da gestão da doença um tema central do Estado moderno. É neste contexto que a medicina se torna um instrumento poderoso de controle das populações, incorporando no seu campo de saberes-poderes tudo quanto diga respeito ao corpo e ao espírito.
 Surge então a leitura do fenómeno adictivo à luz da medicina mental da época, incorporando-se a entidade mórbida ?toxicomania? ao quadro classificatório das patologias mentais. Poderíamos estabelecer entre a palavra do toxicodependente e a do louco um paralelo: o sistema social ? e a sua cúpula, o sistema científico ? não a escutam em si, não lhe reconhecem o direito a, sendo palavra, falar dum modo literal. É como se não falasse senão por referência para aquilo que remete: a entidade mórbida, o quadro clínico, a perturbação. Mais raramente remeteria para um mundo que, apesar de extravagante, não releva do mórbido: o da adivinhação, das percepções superiores, de planos de lucidez vedados à experiência comum. Eis como aquilo que assusta e incomoda e aquilo que atrai e fascina comunicam num limbo de fronteiras ténues e de equilíbrios instáveis ? como se, em todo o planar próximo dos píncaros, haja sempre a convivência do abismo que chama, da queda e da penumbra.
 Aquilo que parece decisivo para o que aqui nos interessa é o seguinte: o dispositivo de saber-poder das drogas determina hoje de tal modo a percepção que podemos ter sobre o fenómeno (e a própria auto-percepção do drogado) que a escuta do que acontece em nós no contacto com uma substância psicoativa está enviesada à partida. A experiência da droga está prisioneira do seu efeito, figura longamente preparada pelo discurso científico das drogas. Em suma, a ciência prefere dominar o efeito, estabelecer as condições da intoxicação, determinar as modalidades evolutivas do sofrimento narcótico, a escutar a experiência no sentido propriamente fenomenológico.
 O efeito histórico do dispositivo do chamado ?combate à droga? tem como resultado um fundo de preconceito que envolve todos os juízos e uma diabolização que condena todos os actos de aproximação à alteração voluntária de consciência. Enredados nesta cruzada moral, deixamos de lado a lucidez que deveria questionar. Por ex., por que enviamos cidadãos livres às Comissões de Dissuasão do Consumo de Drogas, espécie de confessionário invertido onde, em vez de se ir levar alguma verdade que pesa na consciência, se vão contar as mentiras que o dispositivo de ?combate à droga? espera ouvir dos consumidores, a bem da paz social e da conservação dos costumes? Entretanto, nos interstícios da conveniência oficial, segue o mundo psicotrópico nas suas múltiplas expressões apenas conhecidas dos respectivos actores sociais...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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