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Cinco minutos de lucidez

Foi recentemente traduzida uma longa entrevista sobre assuntos políticos com Noam Chomsky, 74 anos, linguista, americano. Os entrevistadores intitularam-na  ?Duas horas de lucidez? (Inquérito, 2002). Vale a pena ler esse livro, porque o título está de acordo com o conteúdo. 

Sabe-se, p. ex., quão estimada é, em certos meios universitários e políticos, a ideia de que o pior inimigo dos povos é o ?neoliberalismo? ou o ?capitalismo neoliberal? ou a ?globalização?. Apraz-me registar vários argumentos de Chomsky semelhantes aos que aqui desenvolvi para rebater essa ideia (cf. ?Liberalismo, neoliberalismo, antiliberalismo?, A Página, 06. 02, ?Globalização: léxico reduzido?, 08. 01). 

Um novo OFNI: ?neoliberalismo?

No seu livro ?Investigação acerca da natureza e das causas da riqueza das nações?, Adam Smith (1723-1790), o teórico da economia liberal, argumenta que o LIVRE jogo das leis da oferta-procura e concorrência favorecem o crescimento económico. Hoje em dia, porém, a economia está dominada e ARREGIMENTADA por gigantescos oligopólios em aliança com os Estados. A indústria da aviação civil, p. ex., é dominada pela Airbus (Europa) e a Boeing (EUA), dois oligopólios copiosamente financiados pelos dinheiros públicos. 
Mais, a teoria da livre troca assentava na premissa de que o trabalho é móvel e o capital imóvel. Era a hipótese de David Ricardo (1772-1823), continuador das teses liberais de Smith e autor da teoria das vantagens comparativas da especialização nacional. Ao ilustrar a sua oposição ao proteccionismo com as trocas de vinho e têxteis entre Portugal  e a Grã-Bretanha, Ricardo argumentou que, se os ingleses conseguissem exportar os seus capitais para Portugal, seria lógico que vinhos e têxteis fossem ambos produzidos em Portugal. Mas ele partia do princípio que os capitalistas ingleses preferiam conservar o seu capital em Inglaterra.
Como observa Chomsky, ?esta é a teoria. Na realidade, passa-se exactamente o contrário. O trabalho é imóvel, mais do que alguma vez foi durante séculos?, dado que os fluxos migratórios são hoje rigidamente controlados. Mas os capitais movem-se vertiginosamente. ?Cerca de dois mil milhões de dólares deslocam-se todos os dias de um país para outro. Centenas de vezes mais do que antigamente. Em contrapartida, são investimentos a muito curto prazo. É mau para a economia, mas muito rentável para o capital financeiro?.
Acresce que ?o liberalismo clássico tem sido alvo de um ataque indirecto por parte das multinacionais. Isto a tal ponto que os novos acordos comerciais garantem às multinacionais um estatuto nacional. Se a General Motors se instalar no México deve ser tratada como uma empresa mexicana. Mas se um cidadão mexicano for para os Estados Unidos, não é tratado como um cidadão americano. Assim as pessoas não têm direito a um estatuto nacional, apenas as entidades orgânicas podem aspirar a tal. É um atentado directo ao liberalismo clássico. Se Adam Smith  assistisse a isto, daria voltas na sepultura!?

Economia de mercado?

?Acha que há uma alternativa a esse modelo capitalista? ? Chomsky: ?Em primeiro lugar, não há capitalismo. O capitalismo não existe, pelo menos no sentido de uma economia de mercado pura. Estamos em presença de uma economia que se divide entre um sector público, que assume colectivamente os custos e os riscos, e um enorme sector privado, nas mãos de instituições totalitárias. Isso não é capitalismo?. Qualifica-se muitas vezes esse sistema de economia de mercado. Mas o mercado é só uma parte desse sistema. A verdade é que, como diz Chomsky, ?ainda não se descobriu um nome [adequado] para ele?.

Globalização e Internet

Uma coisa é certa: ?Adam Smith e todos aqueles que acreditavam no mercado ficariam horrorizados? se ouvissem chamar ?neoliberal? a esse sistema resolutamente antiliberal. ?Globalização?,  então ? Não. ?A globalização é uma coisa muito boa. Graças a ela, nós podemos, vocês e eu, estar neste momento em Itália. Esta é uma globalização de tipo democrático. Mesmo os investimentos estrangeiros podem por vezes gerar efeitos benéficos. A questão é de saber como é que esta globalização é concebida?.
A Internet é um bom exemplo. ?É uma invenção desenvolvida com fundos públicos. Quando dependia do Pentágono e da National Science Foundation, não estava submetida a qualquer restrição?. Desde que passou para o sector privado, em 1995, os oligopólios (Microsoft, AOL, Tc)  tentaram controlar o acesso do grande público a esse utensílio e transformá-la num enorme supermercado. O público, esse, esforça-se por preservar a sua liberdade. A Internet é valorosíssima para difundir informações de toda espécie. Foi graças a ela, p. ex., que as organizações e os indivíduos solidários com Timor-leste se puderam mobilizar em todo o mundo. Sucedeu o mesmo com o movimento democrático que acabou por derrubar Suharto na Indonésia. Quem levará a melhor: os oligopólios (em aliança com os Estados) ou os indivíduos ?  ?Tudo dependerá da forma como os indivíduos reagirem?. Como em tudo o mais, acrescento eu.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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