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Os tão badalados rankings

Há já muito tempo que perdi a vontade de comentar factos. O sonho que alimentava o espírito combativo foi perdendo as penas das asas e tende a quedar-se num conformismo amargo mas legítimo. Houve, porém, recentemente, um assunto que me tocou muito de perto e que feriu o compromisso que assumi com a minha actividade de professora. Trata-se da avaliação/classificação de escolas, os tão badalados rankings.
Fui professora de mais de um milhar de alunos e vivi por dentro todas as Reformas de Ensino. Estou à vontade para falar de educação. O meu trabalho não foi de gabinete mas de acção de campo. Apesar de aposentada há quase dois anos vivo ainda os problemas profissionais e sinto-me suficientemente lúcida para os analisar.
Avaliar escolas por resultados numéricos, e, ainda por cima, de exames de 12º ano é contrariar todo o espírito que preside à filosofia da Lei de Bases do Sistema Educativo e às reformas que, mais ou menos, nela têm assentado. O mínimo que se pode dizer de tal critério é que é enganoso ou falacioso.
Considero, inquestionavelmente, que os bons resultados académicos são importantes. Sempre valorizei a exigência científica, não me deixam mentir os meus alunos e os professores que formei. Só que esses resultados são números que reflectem realidades merecedoras de análise à luz de muitos factores, especialmente os factores sócio-económicos dos alunos. Com isto não quero negar o valor dos bons alunos, dos que obtêm bons resultados à custa do seu trabalho, das suas capacidades intelectuais e do empenho do seu professor. Há, no entanto, alunos que, sem ajudas paralelas à escola, vindos de meios sócio, cultural e economicamente desfavorecidos até conseguem o que outros não conseguem. Têm de ser duplamente bons. A este assunto, porém tem sido dada alguma atenção.
O que pretendo perguntar é onde está avaliado o papel da Escola no desenvolvimento das competências humanas e humanizantes, o resultado da tal educação para a cidadania e para a felicidade humana? A Escola é, sem dúvida, um meio privilegiado para educar para a vida. A Escola ensina, mas, acima de tudo, deve educar.
As escolas devem ser avaliadas, sem dúvida, mas com critérios inteligentes e fundamentados em estudos sérios e profundos que alcancem o âmago da verdadeira Educação. Os critérios usados nesta classificação são os da velha, velhíssima Escola em que aprendi e também ensinei.
A Escola nova assenta em conceitos bem definidos de Educação e Formação. Implica critérios novos, outras metodologias e estratégias, outra ordem de meios e recursos, porque os seus objectivos são diferentes. Acima de tudo propõe-se construir um novo projecto de vida, a felicidade humana. Por isso a Escola não pode estar desligada do homem e da sua vida  de relação.
Durante décadas, o Ensino-Aprendizagem foi enformado de uma filosofia positivista, servida por modelos de investigação quantitativa e aplicação selectiva, catalizadores de diferenças e geradores de desigualdades e de insucessos. Tocada por uma visão humanista, a Escola repensou o seu papel, apercebendo-se do valor das diferenças, e foi levada à valorização de contextos e interacções que conduziriam ao sucesso. Daí nasceu uma Escola dinâmica, baseada na promoção da pessoa humana. Só esta Escola pode servir o Ensino-Aprendizagem preconizado pelas Reformas assentes nas traves mestras da Lei de Bases do Sistema Educativo. Mas, infelizmente, isto não passa de words mere words como dizia Shakespeare. E a prova são os critérios, se é que os houve, desta avaliação-classificação.
O grande papel da Escola está em todo o percurso do aluno, e situa-se muito mais para trás dos resultados do 12º ano. Todos sabemos que o fenómeno da exclusão sempre existiu, subsiste e tende a tomar cada vez maiores proporções. Reveste-se de contornos variados, mais nítidos ou mais esbatidos, discriminando, marginalizando e eliminando. Este fenómeno atinge-nos a todos, sendo cada vez mais importante encará-lo de frente e com grande lucidez. Há ainda no mundo quem pense que é possível desmontar e atacar as causas do fenómeno. Há muitos professores e muitas escolas que fazem um trabalho ciclópico para conquistar aqueles alunos que, por razões diversas, não são os verdadeiros culpados pelo seu próprio insucesso. Fazer com que um aluno desmotivado venha à escola, esteja sentado dignamente na sala de aula, abra o livro, mesmo que nada mais faça é, para um professor, uma conquista tão grande ou maior do que ter bons resultados num 12º ano. São essas escolas e esses professores que se vêem agora situados nos últimos lugares dos tais rankings.
O professor é o grande agente, o senhor da heurística que deve presidir a todo o Ensino. Mas é ele, também, que deve ser o primeiro a denunciar todos os sofismas, todos os desvios e obstáculos do Sistema susceptíveis de conduzir ao desmoronamento do verdadeiro sentido do Ensino-Aprendizaagem. Custa-me ver tantos colegas congratularem-se, acriticamente, por a sua Escola estar situada nos primeiros lugares do ranking. Por isso me solidarizo com todos aqueles que, no silêncio e fora do palco, continuam a trabalhar para a realização de sonhos e de utopias.


  
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Edição:

N.º 117
Ano 11, Novembro 2002

Autoria:

Eva Cruz
Professora
Eva Cruz
Professora

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