Página  >  Edições  >  N.º 116  >  Altamiro Costa Pereira em entrevista à Página

Altamiro Costa Pereira em entrevista à Página

"O novo ministro (da Educação) tem uma tarefa imensa, para não dizer impossível"

Foi candidato a reitor da Universidade do Porto (UP) nas últimas eleições. Não conseguiu vencer, mas abalou, de alguma forma, as estruturas daquela que é considerada a maior universidade do país. Critica o despesismo e a falta de organização, reconhecendo qualidades no novo ministro da Ciência e do Ensino Superior. No que toca à actividade profissional, Altamiro da Costa Pereira tem desenvolvido actividade científica em centros de investigação nacionais e estrangeiros e é, desde 1996, director do Serviço de Bioestatística e Informática Médica da UP. É professor catedrático de Sociologia Médica e Vice-Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Medicina da UP. É, este mês, o entrevistado de "a Página".


Porque decidiu candidatar-se a reitor da Universidade do Porto? Foi a primeira vez, em vinte anos, que se quebrou a regra da candidatura única...

Talvez o principal motivo tenha partido da constatação de que algo pode mudar para melhor na universidade portuguesa, e na Universidade do Porto (UP) em particular - provavelmente não é uma problemática que dirá exclusivamente respeito à universidade, é algo mais abrangente, que atravessa a sociedade portuguesa e as sociedades ocidentais -, onde urge implementar questões como a qualidade, aprofundando ao mesmo tempo questões de proximidade com as pessoas e colocando na ordem do dia o problema da transparência das instituições e da partilha de recursos e ideias.


Apesar de não ter sido eleito, sente que valeu a pena?

Sim, obviamente. Poderá ter ficado algum sentimento de desilusão, talvez até mais da parte de quem me apoiou, mas penso, com toda a sinceridade, que o balanço foi bastante positivo. Em primeiro lugar por se ter elevado o grau de participação eleitoral - que se situou na ordem dos 92% - o que é um resultado espantoso. Em segundo lugar porque se conseguiu lançar o debate em torno de questões importantes, não só na imprensa como, principalmente, nas próprias faculdades. Finalmente, porque foi crescendo a sensação junto das diferentes candidaturas de que algo pode e deve ser feito para melhorar a universidade. Acredito, inclusivamente, que o actual reitor, agora reconduzido, cumprirá um mandato de certa forma mais credibilizado, porque foi eleito perante alternativas, e responsabilizado, porque sabe que a universidade é capaz de apresentar alternativas à sua liderança.
O facto de ter havido aspectos positivos não impede, porém, que tenha ficado uma pequena mágoa relacionada com algumas questões processuais ligadas ao acto eleitoral. Em primeiro lugar - e seria desejável que a universidade reflectisse sobre isso - no que se refere às questões estatutárias. Basta dizer que o actual estatuto, por exemplo, consagra à equipa vigente, à partida, cerca de 10% dos votos apenas pela inerência do exercício dos cargos. Uma candidatura opositora não tem esse privilégio. É de realçar também que uma percentagem apreciável de eleitores, nomeadamente estudantes, nunca tenha chegado a tomar posse dos seus cargos na Assembleia da Universidade - porventura por razões de ineficiência administrativa - e, por essa razão, não tenha podido usufruir do direito de voto. Depois, o próprio facto de as eleições se terem realizado num período "morto" de actividade académica e de não ter havido um período formal de debate, já que os cadernos eleitorais só foram definitavamente conhecidos dois dias antes da votação.
Enfim, circunstâncias que talvez se expliquem pela pouca prática da UP nestas questões, já que há vinte anos que as eleições tinham um candidato único, mas que marcaram o processo eleitoral.


Uma das principais linhas de orientação da sua candidatura era precisamente mudar a relação entre a reitoria e as faculdades. Pensa que existirá alguma forma de afastamento?

Existe um afastamento a dois níveis. O primeiro relaciona-se com o défice de comunicação - seja no interior das faculdades, seja entre as diferentes faculdades, seja ainda entre as faculdades e a reitoria. Mas, tal como há pouco referia, este não é um problema específico da UP nem da sua reitoria, é mais global. Mas no que se refere à UP, não estão reunidos, de facto, muitos mecanismos que promovam essa comunicação. Quando falo de comunicação falo em circulação e troca de informação, de contactos, de experiências, etc... Se algum aluno, docente ou funcionário quiser saber o que se passa no seio da instituição a que pertence, por exemplo, a nível administrativo, cultural, científico ou social, depara-se com muitas dificuldades; e se quiser obter informações acerca de outras instituições ou da reitoria mais dificuldades terá. O 'site' da reitoria disponibiliza alguma informação, mas de carácter mais formal, como o estatuto da universidade, falhando no que toca à divulgação de eventos científicos e culturais ou de informação processual como actas e deliberações das reuniões, orçamentos, etc...
Não quero com isto levantar qualquer tipo de suspeição, mas existe uma necessidade de participação na vida institucional da Universidade que não está a corresponder às expectativas de quem a vive. É precisamente este segundo nível, o défice de participação das faculdades na política universitária, que tem também condicionado um certo afastamento destas relativamente à sua reitoria.


Pensa recandidatar-se?

Não sei. Penso que há absoluta necessidade de haver, no futuro, candidaturas na mesma linha da que eu apresentei. Uma candidatura independente, desassombrada, que possa colocar os problemas de uma forma natural, firme; que, promovendo o diálogo, consiga dar passos sem atender tanto a compromissos e a jogos de interesses mais particulares. Não tenho dúvidas de que isso será vital para o crescimento salutar da instituição a médio e longo prazo. Agora, não penso que essa candidatura tenha de ser personificada em mim próprio. Estou certo que haverá na UP vários candidatos a reunir estas condições.


O futuro da universidade

Depois de se ter consolidado a nível nacional, qual pensa que deverá ser a orientação estratégica para a Universidade do Porto? Passará pela internacionalização?

Parte do pressuposto de que a UP está consolidada a nível nacional, afirmação com a qual não concordo. A UP tem exemplos de instituições e de pessoas com uma reputação interpares de liderança a nível nacional. Mas essa imagem não se aplica a toda a instituição.
O facto de ser a maior universidade do país só lhe dá mais responsabilidade, o que não é, em si, uma vantagem. Até porque de um momento para outro poderia subdividir-se - há algumas pessoas que defendem essa opção - e o que restaria seriam duas universidades mais fracas. Não. O facto de ser a maior é uma oportunidade, para, nomeadamente, gerar uma massa crítica que lhe permita realizar projectos que outras não consigam. Mas isso por si só não chega.


Olhar para dentro sem perder de vista um horizonte mais alargado...

Obviamente que devemos sempre olhar para o horizonte, mas não nos podemos esquecer onde estamos a navegar. Uma coisa é olhar para o horizonte do interior de um bote salva-vidas, outra é olhar de um transatlântico. E a UP, apesar de não ser um bote salva-vidas, também não é propriamente um transatlântico...
Só teremos, de facto, algum futuro e alguma capacidade de internacionalização se continuarmos a consolidar a universidade ao nível de cada instituição. E há ainda um imenso esforço a fazer. Apesar de não querer fazer juízos de valor sobre cada uma das faculdades ou das unidades orgânicas da UP, uma coisa é certa: se algumas delas têm um grande prestígio a nível nacional, e mesmo internacional, outras há que não o têm. Ou seja, existem assimetrias muito marcantes no interior da UP. Por isso, devemos desenvolver um trabalho contínuo e humilde, sob qualquer circunstância. De outra forma, não duvido que mesmo aquelas faculdades que já adquiriram um certo prestígio internacional rapidamente o perderão se não se esforçarem tanto ou mais do que até aqui fizeram.


Referiu numa entrevista que é necessário "investir nos meios que proporcionem melhor qualidade de ensino e de investigação". Onde ir buscar esses meios quando se corre o risco de a dotação orçamental para o ensino superior diminuir já este ano?

É evidente que a questão das verbas é sempre muito importante, mas penso que o investimento nos meios não se esgota, de maneira nenhuma, na componente financeira. Investir nos meios significa também melhorar a gestão e definir opções estratégicas para as instituições. Ou seja, fazermos mais com aquilo de que dispomos.
São inúmeros os exemplos que posso dar. Na contratação de pessoal, por exemplo, uma instituição pode estrategicamente dar preferência à entrada de técnicos superiores para funções diferenciadas ao invés de trabalhadores com menos habilitações. Um técnico de informática, por exemplo, poderá desenvolver, a longo prazo, um trabalho mais produtivo do que o de dois técnicos administrativos; ou na rentabilização dos meios, concentrando determinados equipamentos - é o caso dos projectores de video, nomeadamente - em locais estratégicos que sirvam vários departamentos ou várias disciplinas, apostando na racionalização dos recursos. Não tem havido a coragem nem o bom senso de investir em organização, ou seja, criar os mecanismos para que as verbas tenham uma boa aplicação.


A que se deve essa situação?

À inércia, a questões históricas, a dados adquiridos. À tal teoria, tão debatida mas tão fracamente combatida, das "quintas" e dos "quintais"... Em boa verdade, os donos dos "quintais" não têm incentivos para acabar com esse tipo de comportamento. Até pelo contrário, quando querem abandoná-lo vêem-se prejudicados.
Para quê ter uma verba avultada e gastá-la em equipamentos sofisticados se não tivermos pessoal formado capaz de tirar proveito desse equipamento? Comprar máquinas é fácil, mas não será mais producente investir na formação pessoal? Essa é a tragédia deste país desde há muitos anos. É fácil ter dinheiro para comprar coisas, mas não é fácil, mesmo com dinheiro, formar pessoas e transformar procedimentos. É uma questão de vontade e de tempo, não apenas de dinheiro.


Depois de quinze anos de expansão, pode dizer-se que o ensino superior atravessará, a partir de agora, uma fase de consolidação. Quem, na sua opinião, tem condições para se afirmar no futuro próximo?

As condições de sobrevivência e de crescimento no futuro terão sempre de passar por uma gestão atenta, entusiasmada, apaixonada mesmo e, de igual modo, técnica e cientificamente competente. E quando falo em gestão não estou a referir-me apenas a questões administrativas, mas antes a projectos científicos e de ensino. A tal gestão estratégica a que há pouco me referia. Sobreviverão e afirmar-se-ão os que conseguirem reunir estas condições. É fundamental apostar-se na avaliação e atribuir os financiamentos com base na produtividade e numa estratégia de longo termo.


A divulgação dos relatórios de avaliação servem esse objectivo?

Não têm servido.


Também não têm sido divulgados... De qualquer forma, podem ou não ser um intrumento fundamental para concretizá-lo?

Sem dúvida nenhuma. A avaliação tem de ser mais credibilizada. É natural que no início todos os processos tenham falhas, mas há que assumi-las e ultrapassá-las. E isso só é possível através de um processo continuado, sistemático, credibilizado de avaliação - e das respectivas consequências, que se reflectem, nomeadamente, na procura das instituições. Enquanto pai quero o melhor para o meu filho, por isso interessa-me saber quais são os melhores estabelecimentos de ensino. Como docente quero saber quais os incentivos para ensinar e investigar melhor. Como aluno quero saber qual o prémio do meu esforço, que não se limite à nota, mas a factores como a empregabilidade e a carreira profissional. A universidade deve saber avaliar-se a ela própria. Isto é uma forma de transparência.


Apreciação positiva do novo ministro


O que se pode esperar do novo ministro?

Devo dizer que neste momento tenho uma opinião bastante favorável do ministro Pedro Lynce. Mas no seio de uma sociedade claramente dominada por valores materialistas, temo que as pressões sobre ele sejam muitas. Um ministro que procura levar um sistema a olhar para si próprio, a auto-avaliar-se - o que implica necessariamente ganhos e perdas económicas para determinados lobbies - tem uma tarefa imensa, para não dizer impossível. Ou tem todo um governo e um povo a apoiá-lo, ou, por mais vontade que tenha, sucumbirá.


Qual a sua opinião sobre as recentes propostas do MCES?

Faço uma apreciação globalmente positiva. Estou à vontade para falar - não tenho qualquer ligação partidária ao partido do governo - e considero que, de um modo geral, são medidas coerentes e positivas. Pelo menos no que se refere às linhas mestras: a linha da responsabilização, da avaliação com consequências, do abandono de um sistema demasiado permissivo e tão pouco competitivo, mesmo relativamente a países com uma dimensão semelhante à nossa.
Por outro lado, não me inibirei de criticar medidas que venham a ser propostas pelo Ministério com as quais eventualmente não esteja de acordo.


Acha que esta passagem de tutela do ensino superior para o ministério da Ciência poderá trazer mais valias?

Penso que sim. Era algo que eu já defendia há muito tempo. Na sua esmagadora maioria, quem desenvolve ciência neste país pobre e com graves limitações estruturais são as universidades. Todo o investimento que se aplique em ciência tem em regra um maior retorno se for realizado no seio das universidades, porque se investe, ao mesmo tempo, na melhoria da qualidade do ensino. De que serve a um país como o nosso promover a competitividade ao nível da produção científica entre as universidades e os institutos de investigação? Provavelmente num país com a dimensão dos Estados Unidos, e em determinadas linhas de investigação específica, até fará algum sentido, mas aqui não se justifica.
Os bons grupos de investigação constituídos fora das faculdades têm provocado, não raras vezes, a diminuição dos níveis de qualidade de grupos análogos dentro das faculdades, diminuindo, entre outras questões, a qualidade da formação pré e pós-graduada. Os investimentos realizados em investigação que esteja ligada ao ensino tem essa dupla mais valia: acabam por constituir excelentes equipas que podem investigar e continuar a ensinar. O que não podemos ter é um sistema em que os investigadores tenham uma carga lectiva excessiva. Há uma partilha de espaços e de tempos que é necessário regulamentar.
Portanto, não acho que haja muitas vantagens em continuar a privilegiar uma investigação desligada das universidades, em "santuários" de investigação, porque dessa forma as universidades estiolam sem recursos, sem investigadores, e passam a ser uns liceus melhorados.
Ou seja, e para concluir a ideia, pode ser muito difícil de resolver estes e outros problemas, mas um ministério conjunto reúne mais condições para conduzir essa tarefa com sucesso.


Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 116
Ano 11, Outubro 2002

Autoria:

Altamiro Costa Pereira
Fac. de Medicina, Univ. do Porto
Altamiro Costa Pereira
Fac. de Medicina, Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo