"O novo ministro (da Educação) tem uma tarefa imensa,
para não dizer impossível"
Foi candidato a reitor da Universidade do Porto (UP) nas
últimas eleições. Não conseguiu vencer, mas abalou, de alguma forma, as
estruturas daquela que é considerada a maior universidade do país. Critica o
despesismo e a falta de organização, reconhecendo qualidades no novo ministro
da Ciência e do Ensino Superior. No que toca à actividade profissional,
Altamiro da Costa Pereira tem desenvolvido actividade científica em centros de
investigação nacionais e estrangeiros e é, desde 1996, director do Serviço de
Bioestatística e Informática Médica da UP. É professor catedrático de
Sociologia Médica e Vice-Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de
Medicina da UP. É, este mês, o entrevistado de "a Página".
Porque decidiu candidatar-se a reitor da Universidade do Porto? Foi a primeira
vez, em vinte anos, que se quebrou a regra da candidatura única...
Talvez o principal motivo tenha partido da constatação de que
algo pode mudar para melhor na universidade portuguesa, e na Universidade do
Porto (UP) em particular - provavelmente não é uma problemática que dirá
exclusivamente respeito à universidade, é algo mais abrangente, que atravessa a
sociedade portuguesa e as sociedades ocidentais -, onde urge implementar
questões como a qualidade, aprofundando ao mesmo tempo questões de proximidade
com as pessoas e colocando na ordem do dia o problema da transparência das
instituições e da partilha de recursos e ideias.
Apesar de não ter sido eleito, sente que valeu a pena?
Sim, obviamente. Poderá ter ficado algum sentimento de
desilusão, talvez até mais da parte de quem me apoiou, mas penso, com toda a
sinceridade, que o balanço foi bastante positivo. Em primeiro lugar por se ter
elevado o grau de participação eleitoral - que se situou na ordem dos 92% - o
que é um resultado espantoso. Em segundo lugar porque se conseguiu lançar o
debate em torno de questões importantes, não só na imprensa como,
principalmente, nas próprias faculdades. Finalmente, porque foi crescendo a
sensação junto das diferentes candidaturas de que algo pode e deve ser feito
para melhorar a universidade. Acredito, inclusivamente, que o actual reitor,
agora reconduzido, cumprirá um mandato de certa forma mais credibilizado,
porque foi eleito perante alternativas, e responsabilizado, porque sabe que a
universidade é capaz de apresentar alternativas à sua liderança.
O facto de ter havido aspectos positivos não impede, porém, que tenha ficado
uma pequena mágoa relacionada com algumas questões processuais ligadas ao acto
eleitoral. Em primeiro lugar - e seria desejável que a universidade reflectisse
sobre isso - no que se refere às questões estatutárias. Basta dizer que o
actual estatuto, por exemplo, consagra à equipa vigente, à partida, cerca de
10% dos votos apenas pela inerência do exercício dos cargos. Uma candidatura
opositora não tem esse privilégio. É de realçar também que uma percentagem
apreciável de eleitores, nomeadamente estudantes, nunca tenha chegado a tomar
posse dos seus cargos na Assembleia da Universidade - porventura por razões de
ineficiência administrativa - e, por essa razão, não tenha podido usufruir do
direito de voto. Depois, o próprio facto de as eleições se terem realizado num
período "morto" de actividade académica e de não ter havido um período formal
de debate, já que os cadernos eleitorais só foram definitavamente conhecidos
dois dias antes da votação.
Enfim, circunstâncias que talvez se expliquem pela pouca prática da UP nestas
questões, já que há vinte anos que as eleições tinham um candidato único, mas
que marcaram o processo eleitoral.
Uma das principais linhas de orientação da sua candidatura era precisamente
mudar a relação entre a reitoria e as faculdades. Pensa que existirá alguma
forma de afastamento?
Existe um afastamento a dois níveis. O primeiro relaciona-se com
o défice de comunicação - seja no interior das faculdades, seja entre as
diferentes faculdades, seja ainda entre as faculdades e a reitoria. Mas, tal
como há pouco referia, este não é um problema específico da UP nem da sua
reitoria, é mais global. Mas no que se refere à UP, não estão reunidos, de
facto, muitos mecanismos que promovam essa comunicação. Quando falo de
comunicação falo em circulação e troca de informação, de contactos, de
experiências, etc... Se algum aluno, docente ou funcionário quiser saber o que
se passa no seio da instituição a que pertence, por exemplo, a nível
administrativo, cultural, científico ou social, depara-se com muitas
dificuldades; e se quiser obter informações acerca de outras instituições ou da
reitoria mais dificuldades terá. O 'site' da reitoria disponibiliza alguma
informação, mas de carácter mais formal, como o estatuto da universidade,
falhando no que toca à divulgação de eventos científicos e culturais ou de
informação processual como actas e deliberações das reuniões, orçamentos,
etc...
Não quero com isto levantar qualquer tipo de suspeição, mas existe uma
necessidade de participação na vida institucional da Universidade que não está
a corresponder às expectativas de quem a vive. É precisamente este segundo
nível, o défice de participação das faculdades na política universitária, que
tem também condicionado um certo afastamento destas relativamente à sua
reitoria.
Pensa recandidatar-se?
Não sei. Penso que há absoluta necessidade de haver, no futuro,
candidaturas na mesma linha da que eu apresentei. Uma candidatura independente,
desassombrada, que possa colocar os problemas de uma forma natural, firme; que,
promovendo o diálogo, consiga dar passos sem atender tanto a compromissos e a
jogos de interesses mais particulares. Não tenho dúvidas de que isso será vital
para o crescimento salutar da instituição a médio e longo prazo. Agora, não
penso que essa candidatura tenha de ser personificada em mim próprio. Estou
certo que haverá na UP vários candidatos a reunir estas condições.
O futuro da universidade
Depois de se ter consolidado a nível nacional, qual pensa que deverá
ser a orientação estratégica para a Universidade do Porto? Passará pela
internacionalização?
Parte do pressuposto de que a UP está consolidada a nível
nacional, afirmação com a qual não concordo. A UP tem exemplos de instituições
e de pessoas com uma reputação interpares de liderança a nível nacional.
Mas essa imagem não se aplica a toda a instituição.
O facto de ser a maior universidade do país só lhe dá mais responsabilidade, o
que não é, em si, uma vantagem. Até porque de um momento para outro poderia
subdividir-se - há algumas pessoas que defendem essa opção - e o que restaria
seriam duas universidades mais fracas. Não. O facto de ser a maior é uma
oportunidade, para, nomeadamente, gerar uma massa crítica que lhe permita
realizar projectos que outras não consigam. Mas isso por si só não chega.
Olhar para dentro sem perder de vista um horizonte mais alargado...
Obviamente que devemos sempre olhar para o horizonte, mas não
nos podemos esquecer onde estamos a navegar. Uma coisa é olhar para o horizonte
do interior de um bote salva-vidas, outra é olhar de um transatlântico. E a UP,
apesar de não ser um bote salva-vidas, também não é propriamente um
transatlântico...
Só teremos, de facto, algum futuro e alguma capacidade de internacionalização
se continuarmos a consolidar a universidade ao nível de cada instituição. E há
ainda um imenso esforço a fazer. Apesar de não querer fazer juízos de valor
sobre cada uma das faculdades ou das unidades orgânicas da UP, uma coisa é
certa: se algumas delas têm um grande prestígio a nível nacional, e mesmo
internacional, outras há que não o têm. Ou seja, existem assimetrias muito
marcantes no interior da UP. Por isso, devemos desenvolver um trabalho contínuo
e humilde, sob qualquer circunstância. De outra forma, não duvido que mesmo
aquelas faculdades que já adquiriram um certo prestígio internacional
rapidamente o perderão se não se esforçarem tanto ou mais do que até aqui
fizeram.
Referiu numa entrevista que é necessário "investir nos meios que proporcionem
melhor qualidade de ensino e de investigação". Onde ir buscar esses meios
quando se corre o risco de a dotação orçamental para o ensino superior diminuir
já este ano?
É evidente que a questão das verbas é sempre muito importante,
mas penso que o investimento nos meios não se esgota, de maneira nenhuma, na
componente financeira. Investir nos meios significa também melhorar a gestão e
definir opções estratégicas para as instituições. Ou seja, fazermos mais com
aquilo de que dispomos.
São inúmeros os exemplos que posso dar. Na contratação de pessoal, por exemplo,
uma instituição pode estrategicamente dar preferência à entrada de técnicos
superiores para funções diferenciadas ao invés de trabalhadores com menos
habilitações. Um técnico de informática, por exemplo, poderá desenvolver, a
longo prazo, um trabalho mais produtivo do que o de dois técnicos
administrativos; ou na rentabilização dos meios, concentrando determinados
equipamentos - é o caso dos projectores de video, nomeadamente - em locais
estratégicos que sirvam vários departamentos ou várias disciplinas, apostando
na racionalização dos recursos. Não tem havido a coragem nem o bom senso de
investir em organização, ou seja, criar os mecanismos para que as verbas tenham
uma boa aplicação.
A que se deve essa situação?
À inércia, a questões históricas, a dados adquiridos. À tal
teoria, tão debatida mas tão fracamente combatida, das "quintas" e dos
"quintais"... Em boa verdade, os donos dos "quintais" não têm incentivos para
acabar com esse tipo de comportamento. Até pelo contrário, quando querem
abandoná-lo vêem-se prejudicados.
Para quê ter uma verba avultada e gastá-la em equipamentos sofisticados se não
tivermos pessoal formado capaz de tirar proveito desse equipamento? Comprar
máquinas é fácil, mas não será mais producente investir na formação pessoal?
Essa é a tragédia deste país desde há muitos anos. É fácil ter dinheiro para
comprar coisas, mas não é fácil, mesmo com dinheiro, formar pessoas e
transformar procedimentos. É uma questão de vontade e de tempo, não apenas de
dinheiro.
Depois de quinze anos de expansão, pode dizer-se que o ensino superior
atravessará, a partir de agora, uma fase de consolidação. Quem, na sua opinião,
tem condições para se afirmar no futuro próximo?
As condições de sobrevivência e de crescimento no futuro terão
sempre de passar por uma gestão atenta, entusiasmada, apaixonada mesmo e, de
igual modo, técnica e cientificamente competente. E quando falo em gestão não
estou a referir-me apenas a questões administrativas, mas antes a projectos
científicos e de ensino. A tal gestão estratégica a que há pouco me referia.
Sobreviverão e afirmar-se-ão os que conseguirem reunir estas condições. É
fundamental apostar-se na avaliação e atribuir os financiamentos com base na
produtividade e numa estratégia de longo termo.
A divulgação dos relatórios de avaliação servem esse objectivo?
Não têm servido.
Também não têm sido divulgados... De qualquer forma, podem ou não ser um
intrumento fundamental para concretizá-lo?
Sem dúvida nenhuma. A avaliação tem de ser mais credibilizada. É
natural que no início todos os processos tenham falhas, mas há que assumi-las e
ultrapassá-las. E isso só é possível através de um processo continuado,
sistemático, credibilizado de avaliação - e das respectivas consequências, que
se reflectem, nomeadamente, na procura das instituições. Enquanto pai quero o
melhor para o meu filho, por isso interessa-me saber quais são os melhores
estabelecimentos de ensino. Como docente quero saber quais os incentivos para
ensinar e investigar melhor. Como aluno quero saber qual o prémio do meu
esforço, que não se limite à nota, mas a factores como a empregabilidade e a
carreira profissional. A universidade deve saber avaliar-se a ela própria. Isto
é uma forma de transparência.
Apreciação positiva do novo ministro
O que se pode esperar do novo ministro?
Devo dizer que neste momento tenho uma opinião bastante
favorável do ministro Pedro Lynce. Mas no seio de uma sociedade claramente
dominada por valores materialistas, temo que as pressões sobre ele sejam
muitas. Um ministro que procura levar um sistema a olhar para si próprio, a
auto-avaliar-se - o que implica necessariamente ganhos e perdas económicas para
determinados lobbies - tem uma tarefa imensa, para não dizer impossível.
Ou tem todo um governo e um povo a apoiá-lo, ou, por mais vontade que tenha,
sucumbirá.
Qual a sua opinião sobre as recentes propostas do MCES?
Faço uma apreciação globalmente positiva. Estou à vontade para
falar - não tenho qualquer ligação partidária ao partido do governo - e
considero que, de um modo geral, são medidas coerentes e positivas. Pelo menos
no que se refere às linhas mestras: a linha da responsabilização, da avaliação
com consequências, do abandono de um sistema demasiado permissivo e tão pouco
competitivo, mesmo relativamente a países com uma dimensão semelhante à nossa.
Por outro lado, não me inibirei de criticar medidas que venham a ser propostas
pelo Ministério com as quais eventualmente não esteja de acordo.
Acha que esta passagem de tutela do ensino superior para o ministério da Ciência
poderá trazer mais valias?
Penso que sim. Era algo que eu já defendia há muito tempo. Na
sua esmagadora maioria, quem desenvolve ciência neste país pobre e com graves
limitações estruturais são as universidades. Todo o investimento que se aplique
em ciência tem em regra um maior retorno se for realizado no seio das
universidades, porque se investe, ao mesmo tempo, na melhoria da qualidade do
ensino. De que serve a um país como o nosso promover a competitividade ao nível
da produção científica entre as universidades e os institutos de investigação?
Provavelmente num país com a dimensão dos Estados Unidos, e em determinadas
linhas de investigação específica, até fará algum sentido, mas aqui não se
justifica.
Os bons grupos de investigação constituídos fora das faculdades têm provocado,
não raras vezes, a diminuição dos níveis de qualidade de grupos análogos dentro
das faculdades, diminuindo, entre outras questões, a qualidade da formação pré
e pós-graduada. Os investimentos realizados em investigação que esteja ligada
ao ensino tem essa dupla mais valia: acabam por constituir excelentes equipas
que podem investigar e continuar a ensinar. O que não podemos ter é um sistema
em que os investigadores tenham uma carga lectiva excessiva. Há uma partilha de
espaços e de tempos que é necessário regulamentar.
Portanto, não acho que haja muitas vantagens em continuar a privilegiar uma
investigação desligada das universidades, em "santuários" de investigação,
porque dessa forma as universidades estiolam sem recursos, sem investigadores,
e passam a ser uns liceus melhorados.
Ou seja, e para concluir a ideia, pode ser muito difícil de resolver estes e
outros problemas, mas um ministério conjunto reúne mais condições para conduzir
essa tarefa com sucesso.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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