Há uma frase batida que costumo ouvir muitas vezes na boca de
gente socialmente e profissionalmente muito variada, sintoma de que anda por aí
um nervo há muito descarnado que nenhum analgésico consegue insensibilizar
completamente. Já a devem ter ouvido por certo (e quem sabe se dito, também) :
"a língua portuguesa é muito traiçoeira". Mas é a frase, não a língua onde
nasceu, que é traiçoeira.
No seu tom aparentemente reverente ("misteriosos e insondáveis
são os alçapões da língua portuguesa que nós, seus modestos utentes, mal
adivinhamos sob os nossos pés") é, de facto, um passa-culpas que dá imenso
jeito. Como a boa da língua tem as costas largas e uma infinita paciência com
todos os desmandos que são praticados em seu nome, sempre que contra ela
prevaricamos, a culpa, claro, é dela, não nossa. Quem a manda ser tão
complicada?
Agora, porém, as coisas ficaram, de repente, mais sérias. Porque o
pseudo-aforismo subiu às altas esferas da governação. Imagino que já está
pronto a ser servido como explicação derradeira, se a coisa não resultar?isto
é, se os trabalhadores assalariados e os seus sindicatos não se ficarem pelo
"direito à indignação".
A coisa é esta: tentar redefinir quando acaba o dia e começa a noite. O local
escolhido: o novo código do trabalho (em fase de anteprojecto). O instrumento:
o Diário da República. Em que consiste a redefinição ? Nisto: se a vontade do
governo se concretizar, passará a ser DIURNO o trabalho até às 23 horas,
NOCTURNO o que se iniciar a partir da vigésima terceira hora (até de manhã).
Digam o que disserem a ciência e o senso comum.
A coisa é, aliás, tão grotesca para a longitude e a latitude que nos coube em
sorte, tão acintosamente contra-evidente, mesmo no pino do Verão, que haverá,
presumo, mesmo no Conselho de Ministros, quem se atreva a levantar dúvidas
sobre as probabilidades do grandioso OFNI em preparação vir a ter êxito. Mas
para as dúvidas desta ordem que nesse lugar se poderão levantar, as paredes não
costumam ter ouvidos, pelo que só nos resta imaginar.
Ministro A: "Não estaremos a ir longe demais, caro colega ? Afinal de contas, a
noite não se institui por decreto... (uma voz não identificada interrompe, em
aparte: "só se for nos países do "sol da meia-noite": Noruega, Suécia,
Finlândia, Islândia..."). É uma daquelas questões, pelo menos em países como o
nosso, que não levanta dúvidas a ninguém, ao contrário, digamos, da incineração
de resíduos tóxicos. Por isso, há um risco sério desta medida, se não for muito
bem explicada, poder vir a ser alvo de chacota geral. E mesmo muito bem
explicada, não sei se colherá...". Ministro B: "Acredite, sr. Ministro, que
muito admiro a sua coragem e competência. E não ponho evidentemente em causa,
nem nenhum de nós pôe, os princípios de modernização que vossa excelência
pretende introduzir no novo código laboral. Mas ponho-lhe esta questão, muito
comezinha: que responderemos se algum partido ou deputado da oposição nos
perguntar (e vossa excelência saberá que não podemos descartar essa hipótese)
se o Conselho de Ministros passará a reunir durante o período "diurno" das 21
às 23 horas, até para dar o exemplo ao país da seriedade com o governo encara
esta medida ?". Ministro C: "Não teme vossa excelência que esta medida possa
minar os valores de estabilidade da família que o governo defende e o seu
partido tanto preza?" .
Imaginemos a réplica do ministro autor da portentosa "inovação": "sim, há um
risco muito grande envolvido em toda a operação. E é verdade que se trata de
uma medida polémica. Estou consciente disso. Mas quem não arrisca não petisca.
E poderemos sempre, em última instância, se tivermos de recuar, alegar o velho
ditado: "a língua portuguesa é muito traiçoeira". Mais alguma dúvida?".
|