Página  >  Edições  >  N.º 116  >  Redefinir a noite por decreto

Redefinir a noite por decreto

Há uma frase batida que costumo ouvir muitas vezes na boca de gente socialmente e profissionalmente muito variada, sintoma de que anda por aí um nervo há muito descarnado que nenhum analgésico consegue insensibilizar completamente. Já a devem ter ouvido por certo (e quem sabe se dito, também) : "a língua portuguesa é muito traiçoeira". Mas é a frase, não a língua onde nasceu, que é traiçoeira.

No seu tom aparentemente reverente ("misteriosos e insondáveis são os alçapões da língua portuguesa que nós, seus modestos utentes, mal adivinhamos sob os nossos pés") é, de facto, um passa-culpas que dá imenso jeito. Como a boa da língua tem as costas largas e uma infinita paciência com todos os desmandos que são praticados em seu nome, sempre que contra ela prevaricamos, a culpa, claro, é dela, não nossa. Quem a manda ser tão complicada?
Agora, porém, as coisas ficaram, de repente, mais sérias. Porque o pseudo-aforismo subiu às altas esferas da governação. Imagino que já está pronto a ser servido como explicação derradeira, se a coisa não resultar?isto é, se os trabalhadores assalariados e os seus sindicatos não se ficarem pelo "direito à indignação".
A coisa é esta: tentar redefinir quando acaba o dia e começa a noite. O local escolhido: o novo código do trabalho (em fase de anteprojecto). O instrumento: o Diário da República. Em que consiste a redefinição ? Nisto: se a vontade do governo se concretizar, passará a ser DIURNO o trabalho até às 23 horas, NOCTURNO o que se iniciar a partir da vigésima terceira hora (até de manhã). Digam o que disserem a ciência e o senso comum.
A coisa é, aliás, tão grotesca para a longitude e a latitude que nos coube em sorte, tão acintosamente contra-evidente, mesmo no pino do Verão, que haverá, presumo, mesmo no Conselho de Ministros, quem se atreva a levantar dúvidas sobre as probabilidades do grandioso OFNI em preparação vir a ter êxito. Mas para as dúvidas desta ordem que nesse lugar se poderão levantar, as paredes não costumam ter ouvidos, pelo que só nos resta imaginar.
Ministro A: "Não estaremos a ir longe demais, caro colega ? Afinal de contas, a noite não se institui por decreto... (uma voz não identificada interrompe, em aparte: "só se for nos países do "sol da meia-noite": Noruega, Suécia, Finlândia, Islândia..."). É uma daquelas questões, pelo menos em países como o nosso, que não levanta dúvidas a ninguém, ao contrário, digamos, da incineração de resíduos tóxicos. Por isso, há um risco sério desta medida, se não for muito bem explicada, poder vir a ser alvo de chacota geral. E mesmo muito bem explicada, não sei se colherá...". Ministro B: "Acredite, sr. Ministro, que muito admiro a sua coragem e competência. E não ponho evidentemente em causa, nem nenhum de nós pôe, os princípios de modernização que vossa excelência pretende introduzir no novo código laboral. Mas ponho-lhe esta questão, muito comezinha: que responderemos se algum partido ou deputado da oposição nos perguntar (e vossa excelência saberá que não podemos descartar essa hipótese) se o Conselho de Ministros passará a reunir durante o período "diurno" das 21 às 23 horas, até para dar o exemplo ao país da seriedade com o governo encara esta medida ?". Ministro C: "Não teme vossa excelência que esta medida possa minar os valores de estabilidade da família que o governo defende e o seu partido tanto preza?" .
Imaginemos a réplica do ministro autor da portentosa "inovação": "sim, há um risco muito grande envolvido em toda a operação. E é verdade que se trata de uma medida polémica. Estou consciente disso. Mas quem não arrisca não petisca. E poderemos sempre, em última instância, se tivermos de recuar, alegar o velho ditado: "a língua portuguesa é muito traiçoeira". Mais alguma dúvida?".


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 116
Ano 11, Outubro 2002

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo