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A camioneta da Esperança

Os professores são como os melões. Só os conhecendo por dentro se pode avaliar da sua qualidade. Quando nos deixamos conduzir pela aparência, a surpresa pode ser bem desagradável. Quebrado o verniz da casca, uns revelam-se maduros, outros verdes, outros podres... Estava cogitando sobre a matéria, quando a Esperança me telefonou.

A Esperança é educadora. Faz um belo par com outro educador (ledos infantes que a quem tais educadores cabe em sorte!). Como não é por acaso que há acasos, as palavras da Esperança chegaram no momento exacto de dever esquecer criaturas que, de tão amargas, não deveriam usar o nome "professor". A palavra "professor" só se ajusta na perfeição à Esperança e a muitos outros que honram a sua nobre profissão e nela exercitam a solidariedade. Felizmente para as crianças e para os apreciadores de melões, abundam frutos doces e maduros.
São educadores como a Esperança e o Paulo que dão sentido ao provérbio africano que nos diz ser preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. São co-autores de uma reforma marginal, silenciosa, que vai acontecendo um pouco por toda a parte. Avessa às modas, imperceptível, pressinto-a nas nossas escolas, pródigas em profissionais que antecipam o tempo profetizado por Tolstoi, há mais de um século: "a Escola deixará de ser talvez tal como nós a compreendemos, com estrados, bancos, carteiras: será talvez um teatro, uma biblioteca, um museu, uma conversa".
À medida que se aproxima o termo da minha carreira de professor, sinto-me irmanado com os que recusam aprender a geografia dos comboios para viver na era dos aviões e aceitam o desafio de repensar a Escola, tarefa sempre colectiva. Sinto-me ínfima parte de uma fraternidade de românticos e conspiradores, co-autores de uma reforma que se cumpre à revelia da bricolage normativa e das reformas desenhadas por engenheiros.
A pedra de toque da suave mutação é a solidariedade. A evocação da história do "molho de varas viria a propósito, mas escolhi uma outra metáfora para enfeitar o conceito: a da camioneta.
O meu amigo Abílio ajudava a organizar excursões de camioneta. Ainda o dia da excursão vinha longe e já um vizinho lhe batia à porta, a pedir para pôr a sogra junto à cadeira do motorista, porque ela lhe dissera que, "se não fosse à beira do motorista, era melhor ficar em casa. E não queira saber os problemas que eu tenho tido co'a minha sogra! Se ela me ficasse em casa, era mais uma carga de trabalhos co'a minha patroa. E o compadre Abílio que me desculpe, mas eu até sei que já fez a vontade a mais alguém, que mo disse 'inda agora...".
O amigo Abílio cortava a fala ao requerente e prometia o almejado lugar. Porém, não tardava nova fala precatória.
"Ó senhor Gravano, ainda bem que o encontro! O meu cunhado, o Neca... Não me diga que não conhece! Ele pediu-me que lhe pedisse para o filho mais novo ir nos lugares da frente, que o catraio enjoa. Nestas ocasiões, é um pisco a comer e o pouco que engole deita-o fora logo ao chegar à a primeira curva. Não me diga que não! Pela sua rica saúde!"
Despachado mais um requerente com promessas de "ir ver o que se podia fazer", logo outro pedido o aguardava à chegada ao café.
"Deixe estar, que é por minha conta!" ? e o generoso pagante do café com cheirinho despedia-se com peremptória sentença: "Eu sei que posso ir sossegado à minha vida, que o amigo Gravano não é homem para me deixar ficar mal. A minha família vai ir à frente, que os amigos são para as ocasiões, não é? Fique sabendo que é um grande favor que o amigo me faz e vai ver não se há-de arrepender..."
O Abílio Gravano perdia tempo e paciência neste jogo de empenhos. E logo ele, que era pessoa de se perder dos carretos com facilidade! Grandes males, grandes remédios... "E digo-lhe, professor, os que ajudei a passar a salto para França, coitados, gastavam o que não tinham e não eram tão esquisitos! De maneiras que, um dia, juntei o povo todo na Tojela e, antes de dar ordem de partida ao motorista, fui ao micro e disse, alto e em bom som: para a próxima, meus amigos, escusam de me andar a pedir para ir no banco da frente, porque a camioneta vai de lado!"
Se há quem continue a impedir que a camioneta do nosso destino comum vá de lado, se há quem tente conduzir os passageiros em marcha-atrás e por labirínticos caminhos, há também viajantes tranquilos (como a Esperança) que rasgam amplas avenidas de solidariedade. Na camioneta da Esperança, desde o condutor à cozinha, todos vão na frente. E, enquanto a mudança se queda por discretos e sinuosos percursos, contornam (juntos!) a angústia dos indícios.


  
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Edição:

N.º 116
Ano 11, Outubro 2002

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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