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Baralhar e Dar de Novo

O desporto escolar e a Mocidade Portuguesa.

Perante qualquer desastre desportivo, como foram os últimos Jogos Olímpicos, os campeonatos mundiais de atletismo, de futebol e outros, geralmente, os dirigentes comentam que "não há desporto escolar", que "desde a extinção da Mocidade Portuguesa nunca mais o desporto escolar (DE) foi o que era." A partir desta constatação, ficam de consciência tranquila. Ignoram que a ausência de uma estratégia política que estabeleça a interface entre a educação e o desporto, tem transformado o DE numa guerra de interesses e os alunos em carne para canhão. Como resultado, temos umas taxas miseráveis de participação desportiva, que abrilhantam as paupérrimas estatísticas da qualidade de vida dos portugueses.
É evidente que não há desporto escolar, pelo menos aquele que todos nós gostaríamos. Em consequência, Fernando Mota, o inexcedível presidente da Federação Portuguesa de Atletismo assistiu impávido e sereno à construção nos últimos 15 anos de cerca de quarenta pistas de atletismo de piso sintético, sem que o número de praticantes, treinadores e dirigentes tivesse aumentado! Mas o que é que isso interessa se um fogacho no Campeonato do Mundo de Pista Coberta, realizado em Lisboa em 2001, onde estiveram presentes as tias e os tios deste país, nas palavras do líder do atletismo, "até serviu de catarse nacional, relativamente à tragédia de Entre Rios"? (Expresso, 2/3/02)
O Presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) o Comandante Vicente Moura, dizia à comunicação social, "fiz a proposta utópica e irrealizável de Portugal receber os Jogos Olímpicos. Não é importante em que ano, 2016 ou 2020...." (Público, 31/7/01) Felizmente, houve quem lhe respondesse a condizer. Rui Cartaxana, antigo director do Record, afirmou: "Totalmente de acordo, quanto à proposta. Quanto ao ano, sugiro antes 2442, que é uma capicua." Como é que se pode levar o comandante a sério?
Gilberto Madail, o responsável pela última loucura futebolística a Oriente, brindou o país com um corolário decorrente dos projectos utópicos e irrealizáveis do comandante do COP: "Um acontecimento impossível pode acontecer, embora tenha uma probabilidade zero." (Noticiário RTP, 28/08/02) Claro que ele tem razão! Não estamos a construir, no período de dois anos, dez estádios de futebol quando há portugueses a viver em barracas? E há dirigentes que ainda querem construir mais estádios!
Este tipo de pensamentos de profundo significado histórico, social e político, está a fazer escola no nosso país. O desporto nacional, ou passa a ter um sistema para suprir com novas pessoas, novas ideias e novos projectos o estado calamitoso em que se encontra, ou corremos o risco de nunca mais passarmos destas tiradas. Esse sistema só pode ser o DE, que para além de contribuir para a qualidade de vida dos portugueses, pode resolver a necessidade endémica de praticantes, de técnicos e de dirigentes do desporto nacional.
O problema é que o desporto escolar, de há muitos anos a esta parte, tem vivido em bolandas. Por um lado, atacado pelo fundamentalismo de alguns professores de educação física, que negam para a sua disciplina o ensino do desporto como vocação e instrumento pedagógico ao serviço da educação dos jovens. Por outro lado, pelo fundamentalismo de alguns dirigentes desportivos do vértice estratégico do desporto nacional, que numa perspectiva neo liberal, só vêem no desporto o rendimento, a medida, o recorde e o espectáculo, pelo que, para eles, o DE só serve para alimentar o profissionalismo desportivo precoce. Em consequência da primeira situação, temos uma educação física e um desporto escolar que, objectivamente, cada vez têm menos significado pessoal, educativo e social. E da segunda, um país desportivisado, com aquilo que há de pior no mundo do desporto.
O governo, agora queixa-se da situação! Quanto a nós, sem qualquer razão, na medida em que hoje poderia estar a colher os frutos semeados no tempo dos governos de Cavaco Silva. Mas, só colhe quem semeia e como não semearam, hoje, têm os dirigentes que merecem, e com este tipo de dirigentes a solução acaba sempre por ser a de baralhar e dar de novo.


  
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Edição:

N.º 116
Ano 11, Outubro 2002

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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