“Errata: Revisões de Uma Vida”, um livro
de George Steiner sobre o povo judeu.
"Por que é que os judeus sobreviveram?" -
é uma interrogação que um notável pensador de origem
judaica, George Steiner, nascido em Paris de pais fugidos da Áustria
nazificada, no início da Segunda Guerra Mundial, e formado na Inglaterra
e nos Estados Unidos, propõe à lógica comum, no seu livro
Errata: Revisões de Uma Vida (ed. Relógio d'Água, 2001).
E reflecte: "Apesar do ostracismo, da segregação, do massacre
e da abominação das câmaras de gás, que talvez tenha
sido predestinada (se pensarmos numa justificação teológica
baseada em certos princípios fundadores do cristianismo, no exorcismo
de Judas). Apesar das tentações do anonimato na nossa modernidade
liberal, da confluência para a normalidade e para a amnésia. Porquê?"
"Agnóstico-messiânico" e literalmente "cidadão
do mundo", como se revela através de uma obra indispensável
para a compreensão do ecumenismo judaico (também chamado sionismo),
Steiner "inveja" os ortodoxos e crentes conservadores para quem a
resposta "é clara como a água: Deus prometeu a Abraão
que a sua semente geraria um povo numeroso como as estrelas, que Canaã
seria seu e da sua prole."
Steiner é um "ímpio" que não se rende ao providencialismo
teológico, mas cede ao fascínio de acreditar que a sobrevivência
do povo judeu comprova o "milagre indispensável" da necessidade
de uma "mediação" entre Jerusalém e Meca, muito
embora recuse que o "fim da história" hebraica se resolva no
actual Estado de Israel: "Parece-me que seria algo escandaloso (uma palavra
de proveniência teológica) se os milénios de revelações,
de sacrifícios, se a agonia de Abraão e Isaac, desde o monte Moriah
a Auschwitz, tivesse como última consequência a fundação
de um estado-nação, armado até aos dentes, uma terra de
especulação financeira e de mafiosos, como todas as outras terras."
Se Steiner fosse um materialista histórico, a resposta ao "porquê"
assentaria porventura em hipóteses menos teleológicas: que, desde
há quatro mil anos, as terras de Canaã, em que se digladiam ainda
hoje judeus e palestinos, outrora tribos dispersas em busca de uma nação-estado
que lhes foi negada até o ministro inglês dos Negócios Estrangeiros,
Lord Balfour, em 1917, ter prometido ao movimento sionista internacional o estabelecimento
de "um lar judeu" na Palestina. Esta continuou a ser o que sempre
fora - espaço de passagem ou estacionamento servindo a política
"imperialista" de egípcios, caldeus, babilónios, persas,
romanos, turcos - até que, chegada a vez dos "ocidentais",
a Inglaterra obteve um mandato da Liga das Nações, em 1922, para
administrar o território, que a ONU "dividiu" em 1947, entre
palestinos e judeus.
A história subsequente é por de mais conhecida: palestinos e judeus
continuam a exprimir dois mundos e duas civilizações, servindo
como testas-de-ponte a novos "impérios", visíveis ou
encobertos. Os Estados Unidos substituiram a Grã Bretanha como entidade
tutelar, investindo o "poder absoluto" em Israel, - e este, finalmente
ufano e triunfalista pela sobrevalorização do seu papel de "tampão"
e "ponte-de-lança" da estratégia imperial americana,
como que reverte a história e - ironia das ironias - decide cobrar da
"má-consciência" do Ocidente o preço de todas
as humilhações sofridas no passado...
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