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A epistemologia ao rubro

Da evidência ao consenso


A publicação de um livro de António Manuel baptista (O discurso pós-moderno contra a ciência - obscurantismo e irresponsabilidade, Gradiva, Lisboa, 2002) que visa outro livro, este de Boaventura de Sousa santos (Um discurso sobre a ciência, Afrontamento, Porto, 12º edição, 2001- 1º edição de 1987) reeditou em Portugal o jogo epistemológico, aceso, por vezes muito violento, que se travou em Inglaterra após a publicação da obra de Thomas Khun The structure of scientific revolutions (1962).
Os estudiosos da natureza do conhecimento científico apoiados no pressuposto positivista de que só a observação e a experiência, conduzidas pela razão objectiva, podem estabelecer com segurança uma lei (ou uma teoria) científica não aceitam e combatem vigorosamente as ideias que Khun e seguidores, segundo as quais um paradigma da ciência se funda no consenso de uma comunidade científica legitimado por investigações anteriores tidas por convincentes, dada a autoridade dos investigadores e as demonstrações laboratoriais criteriosa e rigorosamente planeadas. De um lado, a certeza decorrente do princípio de causalidade assente no método experimental, sem atender a valores subjectivos que contaminariam e prejudicariam o processo de investigação; do outro lado, a aceitação, por acordo ou convenção dos cientistas, de um modelo teórico fundamentado, conferindo assim à ciência uma dimensão sociológica e cultural em que, acentuam alguns epistemólogos, o princípio da incerteza (Heisenberg) desaloja o determinismo. Estas são as linhas fundamentais de uma e de outra posições – contrárias, ainda que não contraditórias, como seria interessante analisar: digamos apenas que o apoio paradigmático no processo investigativo é comum, bem como a substituição do paradigma, quando este se revela inadequado.
De qualquer forma o jogo é forte. Mas deve ser limpo, não se justificando agressões maldosas e gratuitas, como por exemplo, as dos colunistas João César das Neves e Henrique Monteiro, ao classificarem a investigação de Boaventura de Sousa Santos, respectivamente, de “monstruosidade (…)” “ com o único fim de minar a confiança na ciência” e de “sociologia bacoca”. Santo Deus!: isto logo antes e após uma campanha eleitoral de que resultou uma mudança de governo.
Claro que à visão filosófica de matriz anglo-saxónica em geral pode ser feito o reparo de uma tradição empirista e de uma concepção pragmática da verdade, com ressonância neopositivista, que remontam a Locke, Stuart Mill e Willian James. O seu âmbito, porém, difere do da mecânica quântica que até um filósofo cristão como Jean Guitton, conservador em matéria de princípios religiosos, respeita e acolhe. Ora os participantes e adeptos de uma equipa têm o direito de criticar a equipa adversária, a sua representatividade e objectivos; o que não lhes ficam bem é viciar o jogo, descaindo numa fraseologia cumulativa e gratuita, chocarreira, e enveredando por um agonismo que subverte o que de mais genuíno, belo e necessário tem a actividade lúdica. A história da ciência avança dialecticamente e este jogo epistemológico está para lavar e durar, mas que tal aconteça sem dados falsos e cartas na manga que facilmente acabam por se descobrir. Também aos apodos de “obscurantismo” e “irresponsabilidade” com que António Manuel Baptista pretende ferretear a sociologia da ciência e à cruzada intempestiva de David Justino, ministro da educação, na sua primeira intervenção pública, como tal ( aliás saudada por alguns jornalistas e professores) em que pensa fulminar de uma assentada o modelo lúdico do ensino – aprendizagem e a pedagogia sociológica pode responder-se muito simplesmente, classificando tais posições de simplistas. O senhor ministro, em vez de brandir armas de calibre governamental, devia era situar-se para este caso no terreno da investigação e da argumentação das ciências humanas, o que aliás se deseja venha a acontecer. O jogo será outro. O autor deste texto sente alguma dificuldade em aceitar a transferência do jogo político para os planos da investigação, da paradigmatização e dos debates sobre cultura e ciência.

Nota – Uma observação a fazer a Thomas khun e à teoria nele originada é a de que não pode opor-se linearmente a razão consensual à razão individual, até porque nesta funciona um consenso preparatório nas dúvidas, reflexões e ensaios de uma tradição de pensadores, isto sem falar na fascinante ideia da interacção quântica da matéria que tem o seu quê de informação universal. Veja-se os casos de Copérnico/ Galileu/ Kepler, de Newton, de Einstein e de Planck/ Heisenberg/ Hubble, entre outros. Mas a observação mais crítica merece o experimentalismo auto-suficiente que não tem na devida conta a teoria dos quanta, o facto de o observador condicionar a observação e afectar o observado, e a mediação do conhecimento entre o sujeito e o objecto, este a esquivar-se de facto aos paradigmas que se vão sucedendo e acumulando.


  
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Edição:

N.º 115
Ano 11, Setembro 2002

Autoria:

António Cabral
Professor Aposentado, Vila Real
António Cabral
Professor Aposentado, Vila Real

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