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?E-mail? aberto ao director do jornal PÚBLICO

No dia 30 de Junho o Director do jornal Público publicou, de novo, um editorial ( “Uma decisão que fará história”) sobre a questão dos cheques-ensino (vouchers). Desta vez, o pretexto foi a decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos no caso “Zelman versus Simmons-Harris” que se pronunciou sobre a constitucionalidade do programa de “vouchers” posto em prática pelas autoridades do distrito escolar de Cleveland (Estado de Ohio).

Como é sabido, o Director do jornal Público é um assumido defensor deste sistema de financiamento da educação pelo Estado directamente às famílias, bem como do que se convencionou chamar de “políticas públicas de livre-escolha da escola” (ver entre outros os editoriais publicados em 11 e 20 de Abril último). Compreende-se, por isso, que não tenha perdido a oportunidade para, a pretexto desta decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, argumentar, mais uma vez, a favor da bondade desta medida e apontar o “caminho da salvação" para o ensino em Portugal.
Quanto ao primeiro aspecto (a defesa dos “vouchers”) a informação que é dada sobre a decisão do tribunal e sobre o seu significado é tendenciosa (ao contrário, aliás, do que acontece com a notícia publicada no mesmo jornal, no dia anterior, pelo correspondente do Público em Nova Iorque, Pedro Ribeiro). Na verdade, o autor do editorial omite informação relevante que ajudaria a perceber o carácter controverso da decisão e o seu verdadeiro alcance. Por exemplo:

  1. Que esta mesma medida tinha sido declarada inconstitucional pela Justiça Federal, em 2000 e que após recurso para o Supremo Tribunal, a decisão se manteve dois anos num impasse (devido à divisão das tendências de voto entre os juizes), só agora ultrapassado, e mesmo assim, por uma maioria de 5 votos a favor e 4 contra.
  2. Que a decisão tem que ver, sobretudo, com a interpretação que a maioria dos juizes fez do preceito constitucional, alterando o princípio até aí dominante da separação entre o governo e a religião, pelo da simples neutralidade (isto é, basta que seja provado que o programa não favorece qualquer religião em particular).
  3. Que o facto de o Supremo Tribunal dizer que a medida não é inconstitucional isso não significa que ela deva ser posta em prática. Ou seja, a decisão de pôr em prática o programa dos “vouchers” continua a depender de considerações políticas, nomeadamente, de saber se ele contribui para a igualdade de oportunidades, para o reforço da reforço da equidade e da coesão social, para o aumento da eficácia do sistema, etc. E isso não há tribunal que decida! Terão que ser os cidadãos e os seus representantes a pronunciarem-se.
  4. Que os argumentos a favor e contra os “vouchers” são muito mais diversificados e complexos do que a caricatura que deles faz o autor do Editorial, insistindo na sua visão maniqueísta de reduzir o debate à luta entre as “forças do bem” e as “forças do mal”.

Claro que não se pede que um Editorial de um jornal diário seja um ensaio, ou que não emita opinião, mas não ficava nada mal que fosse mais rigoroso e comedido.
Quanto ao segundo aspecto da análise que o editorialista faz da decisão do Supremo Tribunal dos Estado Unidos, ele está relacionado com as lições que se podem tirar para Portugal deste “acontecimento histórico”. E quanto a isso, não se pode ser mais claro:
« Em Portugal estamos bem longe de chegar a este ponto da discussão, apesar de sabermos como muitas escolas públicas prestam um péssimo serviço, apesar de também sabermos que só os que têm mais posses conseguem escolher entre diferentes escolas públicas e privadas. Por cá ainda estamos apenas no início de um outro longo e difícil processo: avaliar com justiça e rigor as escolas. Há, por fim, vontade política de o fazer com transparência. Haja, depois, igualmente vontade para dar o passo seguinte: permitir aos pais que, independentemente das suas posses, tenham capacidade para escolher a escola que entenderem melhor para os seus filhos. Com os tais "cheques-ensino".»
Para quem tinha dúvidas, fica-se a perceber que a preocupação pela avaliação das escolas ( e toda a campanha que o jornal Público fez sobre esta matéria) só tem um objectivo: preparar o próximo passo que é a “livre escolha” da escola pelas famílias dos alunos e em seguida generalizar “os tais cheques-ensino” (e já agora, se possível, antes dos próprios americanos o fazerem).
Ora acontece que colocar as coisas desta maneira pode ser muito interessante para o Director do Público, mas não contribui nada para esclarecer a opinião pública nem para compreender o significado do que está verdadeiramente em jogo neste debate.
Na verdade, há muitas boas razões para se querer fazer a avaliação das escolas com “justiça e rigor”, sem que isso signifique transformar a avaliação num instrumento para a “livre escolha” da escola pelas famílias.
Do mesmo modo, importa dizer que há muitas boas razões para se querer melhorar e diversificar a oferta do serviço público de educação, aumentando a responsabilidade de decisão dos alunos e das suas famílias, sem que isso signifique ser-se a favor da sua privatização.
Finalmente, hoje em dia, mesmo nos Estados Unidos, existem diversas formas emergentes de flexibilizar a oferta de ensino e diversificar os modos de prestação de serviço público que não se esgotam nos “vouchers” (por exemplo, as “charters schools”, o “home schooling”, “as escolas alternativas”, etc.). Além disso, o debate sobre estas questões não se confina aos Estados Unidos e é hoje, nos “quatro cantos do mundo” uma questão central da investigação e da reflexão no domínio das políticas de regulação e “governance” da educação. Aliás, mesmo em Portugal, existe já um capital de reflexão e de investigação nesta matéria (muita dela realizada em contextos de projectos internacionais) que não pode ser posto à margem deste debate.
Por isso é de lamentar que esta questão esteja a ser tratada de um modo tão superficial e tendencioso num jornal diário com forte impacto na opinião pública ligada à educação e que pretendia ser nesta matéria um jornal de referência. Se este texto e a sua divulgação servir para abrir o debate a outros espaços e intervenientes já valeu a pena o esforço.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 115
Ano 11, Setembro 2002

Autoria:

João Barroso
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. de Lisboa
João Barroso
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. de Lisboa

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