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O neofascismo bushiano

Os burros existem e é difícil lidar com eles. Se têm uma estratégia ela é quase impossível de descodificar. É mais fácil lidar com um canalha esperto. Um canalha, em princípio, obedece a uma estratégia. Estudando essa estratégia podemos combate-lo. Um burro não. Um burro é totalmente imprevisível. Por isso nos sentimos tão desarmados face ao actual governo americano.

Confesso que me apetecia escrever sobre o direito à preguiça. E por duas razões. A primeira é obvia. Vamos para férias e é tempo de deixar por alguns dias as nossas preocupações. A segunda razão, e é a principal, é que me apetecia contrariar o discurso do governo que vai todo no sentido de apelar ao sacríficio, ao trabalho, à vida pura e dura, ao sofrimento, tudo em nome de um santíssimo equilíbrio orçamental no presente e de um futuro radioso e dourado que chegará, daqui a anos, pela mão sábia e espírito combativo do Sr. Durão Barroso e seus acompanhantes governamentais. O direito à preguiça está a ser liminarmente esquecido e rejeitado restando o direito ao trabalho com sacrifícios. Não nos deixam esquecer que o reino dos céus tem dificeis acessibilidades e só lá se chegará no futuro, num longinquo futuro e após penar amargamente no presente.
Apesar de o tema ter pano para mangas — mais ainda nesta conjuntura nacional — não vou escrever sobre o direito à preguiça. Em relação ao discurso religioso do governo — é dos pobres trabalhadores e pagadores de IRS o reino dos céus — deixemos que o vento passe, a areia poise e o sol se instale.
Quanto ao mês de férias é melhor não abordar a questão agora. É um ritual sobre o qual convinha meditar quando estivermos mais repousados e pacientes. Por agora basta deixar algumas reticências quanto ao ritual de férias e trabalho que nos impõem e a que me apetece chamar o ciclo do Puma.
Os Pumas são animais solitários. Vivem o ano sozinhos percorrendo mais montes do que vales. Vivem isolados excepto durante a época do cio. Esta época é curta, dura apenas uma semana. Uma espécie de semana esplendorosa de férias. Durante essa semana os Pumas formam inseparáveis pares de macho e fêmea. Permanecem apaixonadamente encostados um ao outro e praticam entre cinquenta a sessenta actos sexuais por dia. Um recorde semanal que nenhum outro animal alcança mesmo que vá de férias beber um garrafão de ginseng para Punta Cana. Após essa exaltante semana a coisa acaba e cada um volta à sua vida solitária. O macho vai passear-se pelas montanhas e a fêmea, grávida, espera pelas crias que deve criar.
O direito à preguiça é o oposto a esta concepção do ciclos de vida do Puma. Onze meses de trabalho e sacríficio para um mês de férias. Ciclos apesar de tudo menos esplendorosos do que os do Puma. O direito há preguiça não se compadece com ciclos, é apenas um outro modo de ver o dia a dia, uma outra forma possível de organizar o trabalho e a vida. Mas essa conversa fica acordada para outro dia.
Regressando ao presente quero sublinhar algumas intensões da proposta do Presidente dos Estados Unidos da América sobre a sua «Estratégia Nacional de Segurança Interna» apresentada no passado dia dezasseis de Julho e aprazada para entrar em vigor no próximo dia dez de Agosto.
Convém lembrar que quer George Bush quer o seu vice-presidente Dick Cheney se apresentaram, durante a campanha eleitoral para a presidência, como modelos exemplares de políticos tarimbados no campo empresarial, simbolos do êxito na gestão das suas empresas. Sabe-se agora que ambos trafulharam na gestão das empresas. Cheney embolsou, em Agosto de 2000, 18,5 milhões de dólares pela venda de acções da sua companhia, Halliburton Corporation, investigada agora por possível manipulação contabilistica. O agora vice-presidente vendeu um pacote de acções à razão de 52 dólares cada uma. Agora, após anúncio dos resultados verdadeiros da empresa, as acções valem no mercado 13 dólares. São estes empresários «sérios», acompanhados por convidados seus quem gere os Estados Unidos e governa na prática o mundo de hoje.
Os dois empresários de sucesso, agora políticos, apresentaram em Julho uma proposta sobre a « Estratégia Nacional de Segurança Interna». A proposta foi acompanhada por um discurso de Bush que considero paranóico. Dando seguimento à sua ideia do «eixo do mal» enumerou uma lista de ameaças catastróficas que pairam sobre as cabeças do puro, bondoso, religioso e superior — mesmo não sendo madeirense — povo americano. Ciberataques, ataques com armas biológicas e químicas ou radiológicas e até nucleares são algumas das ameaças. A dramática situação levou o presidente a propor, entre outras medidas, um reforço da vigilância nas fronteiras e a obrigatoriedade de inspeccionar, nos portos de origem, todos os contentores que se destinem a território americano. O país deve assim fechar-se sobre si próprio e «desinfectar» tudo o que, apesar de tudo, tenha de vir do estrangeiro, do mundo do mal. Foram também criadas equipas de especialistas-especialmente-inteligentes cuja função é imaginar possíveis alvos de ataques terroristas. Decidiu-se preparar novas vacinas contra imagináveis ataques biológicos, deram-se mais atribuições e competências ao exército e criou-se um superministério capaz de conduzir a «guerra contra o terror».
Até aqui não há nada que uma mente doentia, reacionária e burra não possa produzir. Mas Bush foi mais longe. Apresentou um plano para que milhões de trabalhadores passem a ser informadores do governo. Carteiros, electricistas, carpinteiros, montadores de antenas, empregados do gás e da água, mensageiros, camionistas, taxistas ou trolhas são convidados a converter-se em informadores da polícia politica do governo dos EUA. Para alcançar este objectivo o governo quer por em marcha a operação TIPS (Sistema de Prevenção e Informação Contra o Terrorismo). Bush propõe que a operação comece em 10 de Agosto próximo com a atribuição a um milhão de trabalhadores de um número telefónico para onde devem comunicar comportamentos que considerem suspeitos e que observem no seu tempo de trabalho ou de lazer.
«TIPS» em inglês também significa sopro. Esta política traz-me recordações do velho tempo fascista. Também então existia uma rede, não tão completa e bem idealizada, de sopradores ou bufos, para usar a linguagem da época.
Esta proposta de Bush não é um acto isolado mas enquadra-se num conjunto de políticas que convém ter em conta.
Dessas políticas destacam-se algumas medidas: obrigatoriedade de prestar juramento em nome de Deus. Repressão sexual incentivada pelo apoio económico do governo a campanhas a favor da abstinência sexual da juventude. Exaltação do pensamento único e patriótico em nome da pátria, do mercado e da luta contra o terrorismo. Crescente acentuar da repressão que passa pelo aumento das penas, intensificação da aplicação da pena de morte e violência crescente no meio prisional. Predomínio da repressão sobre a integração social. Aplicação da tortura em interrogatórios de detidos suspeitos de «terroristas». Incumprimento e desprezo pelas leis estabelecidas em nome da eficácia repressiva. Crescimento do Estado policial traduzida em leis especiais para as polícias e num aumento da intervenção dos militares quer a nível interno quer externo. Desprezo pelas leis internacionais que se devem aplicar aos outros povos mas não ao povo americano. Recusa em aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI) reclamando um estatuto internacional especial que deixe as mãos livres ao aparelho político e repressivo americano. Silenciamento dos actos e dos autores de acções de vandalismo sobre populações de países terceiros com destaque para os que vêm ocorrendo recentemente no Afeganistão. Autorização dada às suas polícias políticas para promoverem e praticarem o assassínio sempre que julgarem estarem em causa interesses americanos. Repressão, controle, ameaças e desprezo pelos direitos dos americanos que não sejam de cor branca ou de raça caucasiana. Escolha de inimigos externos e posterior propaganda para fazer deles o que não são. É neste contexto que se lança agora a rede de sopradores — ou bufos — e se incita a população à delação.
Fosse esta política praticada por algum governo da europa de leste, do médio oriente ou mesmo da américa latina e tinhamos o coro dos contentes a denunciar o Estado Policial anti-democrático e fascista. Tinhamos a comunicação social mundial a preparar o terreno para uma intervenção democrático-militar americana. Mas como tudo se passa no «Império do Bem» permanece-se calado deixando crescer e regando a erva daninha.
Não é facil enfrentar e desmascarar um canalha. Mas é possivel. É dificil enfrentar e desmascarar um burro. É ainda mais dificil desmascarar um burro que além de burro é canalha e fascista. Mas não é por ser dificil que nos vamos calar.
Usemos entretanto o pequenino direito à preguiça para recuperar ânimo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 115
Ano 11, Setembro 2002

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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