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Do verdadeiro ao falso

O termo erro tem diversos sentidos consoante a circunstância em que é utilizado. Vejamos algumas frases para o ilustrar: "eu cometi um erro"; "eu estou em erro"; "a minha previsão tem uma margem de erro". No primeiro caso, faz-se um juízo sobre um procedimento, juízo moral ou de outra natureza. No segundo caso, supõe-se que há um procedimento correcto que não é cumprido ou uma verdade que não é alcançada ou reconhecida. No último caso reconhece-se a impossibilidade do conhecimento exacto.

As teorias têm de ser eficazes na interpretação e na predição da realidade; mas o conhecimento científico é um processo histórico dinâmico; uma teoria que se mostra incapaz de explicar novos factos, em confronto com outra teoria com maior poder interpretativo, é por esta última substituída, deixa de ser considerada verdadeira para ser considerada falsa, embora mais rigorosamente se deva afirmar que foi superada. O conhecimento científico, a investigação da verdade, é um processo de construção lenta, com períodos de estabilidade seguidos de períodos de contradições e crise que serão superados. É um processo a um tempo animado e condicionado pela curiosidade humana e por estímulos e constrangimentos sociais. Construído com conceitos que, sendo próprios à investigação, não são separáveis e coexistem com os demais conceitos com que se constrói o pensamento humano no seu todo.
A partir do fim do século XIX, a Revolução Científica, como até então era conhecida, veio revelar novos factos então paradoxais. A mecânica clássica viria a ser superada por uma mecânica relativista, na escala macroscópica, e por uma mecânica quântica, na escala microscópica. Assim se desenvolve a Física Moderna. Essa evolução tem as suas raízes não só na mecânica clássica mas também no electromagnetismo, na óptica e nas geometrias não euclidianas, mas foi induzida e tornada necessária pela descoberta de novos fenómenos que não podiam ser interpretados pelas teorias anteriores. Seria porém injusto dizer que as teorias antigas estavam erradas. Até porque as continuamos a utilizar todos os dias, não só para estudar ciência como também para construir muitos instrumentos, máquinas e equipamentos cujos fundamentos são "clássicos". O automóvel, o avião, o telefone, o aparelho de rádio, a máquina fotográfica, etc., são objectos cujos fundamentos são anteriores à Física Moderna, embora possam hoje incorporar aperfeiçoamentos que esta nos trouxe. Por isso podemos sentir desconforto quando alguém intitula um livro "O erro de Descartes" ou afirma que terá descoberto que um dos fundamentos da Teoria da Relatividade estará errado.
Uma outra coisa que aprendemos com a ciência contemporânea é que a realidade, para ser melhor compreendida, não pode ser vista a preto e branco. Há questões que, se colocadas em termos de serem verdadeiras ou falsas, a resposta não permitirá avançar; pondo em termos prosaicos: nem todos os objectos são como as moedas, com duas faces. A mecânica quântica, já no começo do século XX, surpreendeu os nossos antepassados ao "pedir" que fosse deixado em aberto o resultado de uma experiência até ao instante da observação. Também o movimento de sistemas de vários corpos e o comportamento de sistemas (físicos ou de qualquer outra natureza) não lineares evidenciaram a imprevisibilidade das sua evoluções. Porquê? porque o erro de previsão dos estados futuros cresce indefinidamente nesses sistemas. Mas significa isso o fim do conhecimento científico? Não! O caos entrou no domínio da investigação científica como uma nova categoria de fenómeno tão respeitável como os demais e, ainda, com a urgência da sua omnipresença; o caos, sim, porque se investigado, ele também tem as suas leis.
Até mesmo a Lógica, desde a antiguidade grega até ao século XX o esteio mais constante e seguro na eliminação do erro na actividade racional, na busca da verdade, viria a renovar-se radicalmente ao abandonar a milenar disjunção verdadeiro/falso para admitir respostas intermédias com que suportar um raciocínio capaz de entender melhor velhas ou novas realidades. É a lógica difusa - fuzzy logics "inventada" pelo engenheiro Lotfi Zadeh em 1965 e hoje largamente incorporada em diversos domínios da investigação e da engenharia. Não que o ano de 1965 tenha sido uma data transcendente, antes uma referência num longo processo de superação da "velha" Lógica. Com efeito, se Parménides primeiro formulou a disjunção verdadeiro/falso e Aristóteles sobre esse conceito fundou a "primeira" Lógica, logo Heráclito e Platão contestaram o seu fundamento sem contudo formularem uma lógica alternativa; a história posterior é conhecida; só no início do século XX Jan Luckasiewicz elaboraria uma lógica admitindo três ou mais proposições alternativas e só quase no fim do século, já no nosso tempo, a "nova" Lógica Difusa seria definitivamente formulada e incorporada no processo geral de investigação e de desenvolvimento tecnológico também.
Posto o que fica dito, creio que devemos ser muito prudentes e modestos quando nos referimos à verdade e apontamos o erro.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora
Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora

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