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Lídres para uma certa República

Um anglicismo suspeito

A grafia do seu primeiro termo visa tornar mais aparente um anglicismo ("leaders") profusamente reeditado sem encontrar a menor resistência. Julgo que este duplo facto é um sintoma de processos sociais que, pelo seu carácter algo recôndito, escapam tanto ao senso comum como à sociologia vulgar. Mas antes de aí chegarmos, temos algumas observações preliminares a fazer.
Comece então o leitor por ler "lídres" em voz alta. Obterá uma boa (se não mesmo exacta) reprodução fónica de um dos mais frequentes OFNI?s em que os meios de comunicação social falada são useiros e vezeiros. Não há noticiário, entrevista, debate, concurso, em que não apareça. Ele são partidos, sindicatos e associações patronais, que, como toda gente sabe, não têm dirigentes, mas "lídres". Ele são certos programas radiofónicos e televisivos que, como toda a gente sabe, não são, em dado momento, os mais escutados ou vistos, mas são, sim, "lídres de audiência". Ele são certas empresas que, como toda a gente sabe, não detêm, em dado momento, a parte do leão do mercado, mas são, sim, "lídres de mercado", etc.

Singular e plural

O facto é tanto mais digno de nota quanto NÃO é isto o que acontece com as palavras portuguesas com terminações semelhantes a "líder". São, aliás, relativamente poucas. Na classe dos nomes-substantivos, não excederão, talvez, as duas dezenas e pertencem, para mais, a zonas muito especializadas do vocabulário, o que contribui para homogeneizar as suas propriedades léxico-gramaticais. Algumas derivam do Provençal (e.g. esmoler) e do Árabe (e.g. Alcácer). Mas a maioria deriva do Grego (e.g. clister, cateter) e do Latim (e.g. esfíncter, Lúcifer, chanceler, vómer), embora algumas tenham sido primeiramente afeiçoadas ou criadas no Francês e no Inglês. É o caso de "repórter" (do Lat. "re"+"portare", pelo Fr. "report") e de "laser" (acrónimo de "Light Amplification [by] Stimulated Emission [of] Radiation") - um certo tipo de radiação intensa, monocromática e electromagnética, cujo feixe de emissão, pelas suas propriedades ondulatórias, tem uma energia muito elevada e uma amplitude muito pequena. Mas os usuários habituais destas palavras não costumam pluralizá-las à maneira de "lídres" - isto é, não dizem "ésfinctres", "clístres, "esmóleres", "cátetres" - porque sabem do que falam. E nunca fez mal a ninguém saber o que diz quando fala Português ou outro qualquer idioma.
Este regime anómalo de pluralização de "líder", mostra bem que a palavra original, mesmo com uma ortografia aportuguesada, NÃO é portuguesa, morfo-fonológicamente falando. Sê-lo-á, pelo menos, do ponto de vista semântico, como "Laser"? Só poderíamos responder pela afirmativa, se ficasse provada a sua necessidade para preencher uma lacuna do nosso léxico. Mas já vimos que não existe tal lacuna. Para traduzir "leader", temos, à escolha, segundo os contextos, "chefe", "dirigente", "condutor", "governante", entre outras palavras.

A questão

A questão que se coloca não é, pois, a pergunta retórica do Diácono Remédios "se havia necessidade" de pedirmos de empréstimo "leader(s)" ao Inglês, visto que tal necessidade não existe. A questão é, sim, a de saber que necessidade premente têm políticos e jornalistas, especialmente da rádio e televisão (pública e privada, não há diferença neste particular) de preterirem sistemáticamente boas palavras portuguesas em favor deste mal enjorcado anglicismo e do seu ainda mais arrevezado plural. Não tenho uma resposta concludente, antes uma hipótese explicativa que, no interesse da clareza, poderá ser formulada à maneira de um silogismo.
Primeira premissa. O famoso princípio dos "governantes-pastores" e dos seus "cães-de-guarda" humanos, que Platão expôs com grande mestria (como tudo o que escreveu este tão genial quanto temível filósofo) em "A República", "Leis" e outros diálogos, continua a ser a pedra-de-toque da ideologia dominante em matéria de organização política e económica das sociedades, mesmo nas já democráticas.
Segunda premissa. As aventuras totalitárias que assolaram a Europa, a oeste como a leste, com raras excepções (Grã-Bretanha, Suíça, Holanda e Escandinávia), especialmente na primeira metade do século XX, e o seu cortejo de horrores (milhões de mortos, campos de extermínio e de trabalho-escravo, supressão das liberdades cívicas, tremendas destruições patrimoniais) mostraram, porém, a milhões de pessoas comuns, até onde os princípios da república platónica nos podem conduzir. Mais, palavras como "Duce", título oficial de Mussolini, "Führer", título oficial de Hitler, "Caudillo", título oficial de Franco (que todas elas significam "dirigente", "condutor", "governante-pastor") e epípetos como "Paizinho dos povos" (Estaline) e "Grande Timoneiro" (Mao Dze Dong), tornaram-se-lhes igualmente odiosas.
Conclusão. Para muitos políticos (creio que serão a grande maioria, tanto à direita como à esquerda, nos ex-Estados totalitários) que continuam aferrados ao princípio dos "governantes-pastores" - ainda que este seja tão (in)compatível com o Estado de direito democrático como a água é com o azeite - restava o expediente de recorrerem a um eufemismo. A sua escolha recaíu em "leader". Significa o mesmo que Duce, Führer, Caudillo, mas tem a vantagem (para eles) de não ser descodificável pelo grosso dos seus compatriotas, gente maioritáriamente monolingue. Rebaptizado "princípio da liderança", o princípio básico da república platónica - "o maior de todos os princípios é que ninguém, homem ou mulher, deve prescindir de um chefe" - pôde recomeçar, à sorrelfa mas com êxito, uma nova carreira: política, económica, militar e até (com uns pózinhos de "dinâmica de grupo") "científica". Não é nada fácil puxar o rabo deste manhoso gato escondido. Mas tem pelo menos um começo fácil: falar (e exigir que se fale) Português nos sítios onde ele deve ser falado.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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